Uma viagem inusitada

Uma viagem inusitada. Sim, jamais poderia  imaginá-la, nem deve constar mesmo de qualquer catálogo de uma empresa de turismo. Estávamos minha mulher e eu querendo transferir os restos mortais de membros de minha família para  outro jazigo, pertencente à família dela, situado num local bem mais perto das capelas do cemitério de São João Batista, em Botafogo. Caminhada bem mais curta, sem subidas íngremes, e um perigo menor quanto a assaltos, sempre possíveis, num espaço tão amplo e tantas vezes tão deserto.

Nos  dirigimos à administração do cemitério, com a papelada cuidadosamente preparada para se entrar com o pedido. Depois de um longo atendimento, para conferência dos documentos, o funcionário que nos atendia falou: tudo pronto,  podemos agora mesmo fazer a exumação de sua mãe e, em seguida, já transportamos as quatro caixinhas com os ossos para o outro mausoléu. Mas agora?- lhe respondi eu. Temo que a caminhada seja um tanto longa, vamos ter de cruzar o cemitério duas vezes. E aquela rampa? Os meus joelhos estão fortes, mas não quero , nem devo abusar .. Meus exames estão bons, pratico atividade física, … O senhor  fique tranquilo, um carro os conduzirá por todo o trajeto. Um carro? Eis que outro rapaz aparece, nos chamando para o passeio.

 Fiquei perplexo: se tratava de um carrinho sim, penso que o usado no golfe, movimentado por pedaladas, uma parte coberta com um toldo, com dois lugares, a outra, traseira, com dois lugares também, esta com segurança menor. E lá fomos nós, passeando pelas alamedas dos espaços , cada vez mais estreitos,entre os jazigos. Deu para constatar que o campo santo (ih, não gosto do nome),  sob nova administração, estava bem mais cuidado: limpo, com muitas flores por todo o trajeto. Não está correndo muito?- indaguei.  Só com aceno de cabeça, o jovem, na direção, me fez ver que não. Ao nos aproximar da rampa: dá para o carro subir com três pessoas? De novo, na sua linguagem gestual, respondeu que sim. Exibia total segurança. Ah, estes jovens. Subida sem sobressalto , até o jazigo.

A exumação se fez num instante e logo logo, eis as quatro caixas em outro carro para a  travessia, em roteiro oposto. O rapaz e  outro funcionário, já  com alguma idade, trabalhavam com uma destreza impensável. Os músculos do jovem se sobressaíam. Aquele trabalho era a sua academia de musculação.

Os dois carros partiam, por itinerários diferentes, para o outro lado do cemitério. Aquele passeio me fazia ter uma panorâmica do local favorável. Se o campo é santo, não sei, mas que é vistoso, lá isto é. E sem, ainda! , engarrafamentos de trânsito. Até que não é um local tão fúnebre assim, refletia. Não creio que nossa passagem no carrinho fosse notada por alguém, por algum morador destas residências. Mas quem pode garantir? Ìamos deparando com jazigos de conhecidos, de celebridades…Me dava vontade de dizer olá para alguns.Não, falava comigo, E se me respondem? Observa-se facilmente que há as residências dos ricos, dos de classe média e dos pobres. A separação social persiste mesmo lá. Não é, pois, coisa deste mundo injusto.

 Chegamos ao novo mausoléu bem rápido. Logo depois chegava o outro carro. Aberto o jazigo, com a experiência acumulada pelos empregados, em pouquíssimo tempo estava tudo terminado. Novo enterro da família e posse de outra morada. A minha certamente. Mas, o passeio no carro não tinha ainda findado: fomos nele até à porta do cemitério, ainda a uma boa distância. Delicadeza até o fim.

Certamente, percorrer tão longa distância naquele carro, embora meio angustiado,amenizara minha tensão, meu sofrimento sim, ainda que  me reavivasse mais fortemente em mim a sempre repetida precariedade da vida, , desgatando-nos com cada pedrinha em nossa trajetória, tornando-a assim tembém, além de curta, pequena.