Caminhava à tardinha por uma longa e movimentada avenida de Copacabana, com suas lojas enfileiradas, quando de repente bati os olhos num senhor sentado no chão, encostado numa parede. Um dos muitos moradores de rua que povoam atualmente a cidade, no Centro do Rio e em vários de seus bairros. Às vezes formam fileiras à noite.
Alguma coisa no semblante desse morador e, especialmente, em seu olhar me despertaram de imediato a atenção. Gosto de ler semblantes, olhares. Por que ele, me indagava, tomado pela surpresa. Afinal, são tantos moradores de rua: velhos, jovens, crianças, homens, mulheres. Por que ele? O que vi nele?A pergunta que não calava.
Parei em meu caminhar, disfarçando, a certa distância dele. Um homem de cabelos e barba já mais brancos, com uma altura razoável, não se apresentando esfarrapado. Fixando mais a vista, pude constatar que se tratava de um homem de feições bonitas, com menos idade certamente do que aparentava . Seus olhos, grandes e claros, eram mesmo de chamar a atenção. Notei que acusava ligeira inquietação, como à procura de alguém ou de alguma coisa .
Resolvi me aproximar dele. Lhe dei boa tarde e indaguei se estava procurando alguma coisa. Surpreso ficou, muito surpreso. Abriu um pouco a boca, nada dizendo, contudo, de início. Foi a vez dele fixar o seu olhar em mim uns segundos.Após a pausa,me respondeu: a vida.Fiz um gesto qualquer de cabeça a lhe confirmar que tinha entendido .
A vida às vezes é tão dura, que parece nos fugir , não é mesmo? Os seus olhos brilharam. Um melancólico sorriso aflorou em seu rosto, e os olhos me pareceram embaçados. Nenhuma palavra, no entanto. Queria ouvir mais a sua voz. Comeu alguma coisa hoje? Balançou a cabeça positivamente. Como posso ajudar a você agora? Não quer que compre alguma coisa para comer? Com um gesto me fez entender que tinha sede. Pedi que me esperasse e fui a uma confeitaria bem ao lado. Levei água mineral, um sanduíche e uns biscoitos.
Ao entregar a ele o que tinha comprado, falou enfim: quem é o senhor? Disse o meu nome, que morava mesmo em Copacabana e era funcionário público aposentado. Estava caminhando por ali e, de repente, tinha visto a ele com quem, por qualquer motivo, me tinha simpatizado, necessitado talvez de alguma palavra . Arregalou os olhos. Parecia falar por eles.
Algum problema de saúde? Eu tenho alguns, fui logo dizendo para ele. Respondeu seca e tristemente: a vida. Na verdade, ela é que lhe pesava, assim entendi. Não parecia alimentar qualquer esperança de um viver melhor, mais digno, longe daquele chão e o de outras calçadas. O mundo é imenso e nem todos os seus rios são navegáveis, sabemos . Se caímos em um deles, difícil navegar pela vida , evitando travessias que vão nos tornando desiludidos.
Bem, saindo de minhas reflexões, falei para ele: preciso ir. Nada respondeu Estiquei a mão para me despedir. Custou um pouco a esticar a sua. Visível constrangimento.Mãos finas. Ligeiramente trêmulas.
Saí desse encontro muito emocionado. Caminhava de todo desligado do movimento da calçada, das vitrines, do barulho do trânsito… Não, ele nem sempre foi morador de rua, analisava. Que tinha acontecido na vida desse homem? Como ele sobreviveria ? Se referia à vida.Teria apagado dela alegrias, momentos felizes, ainda que fugazes? Se tinha perdido nela, se tinha esgotado de todo com ela, desistindo mesmo dela? Sem esperança, me pareceu, como soariam para ele os versos de Gonzaguinha? “ Ah! Meu Deus! /Eu sei, eu sei / Que a vida deveria ser / Bem melhor e será/ Mas isso não impede /Que eu repita / É bonita, é bonita / E é bonita”
Difícil., muito, continuar a caminhar por estas calçadas da vida , esbarrando nestes moradores de rua.Triste realidade, mas realidade. Caminhar é preciso, sempre, é preciso para não perdermos a nossa utopia. Sem ela, sem ela , não brotará nenhuma esperança, nenhum rumo. Nem o amor se alimentará.
Antes de me afastar, perguntei àquele homem o seu nome. Pedro, balbuciou.Puxa, meu amigo ( arregalou seus grandes olhos com o tratamento recebido), no dia , muito afastado ainda, em que você chegar ao céu, São Pedro bonachão vai dizer: “Entra, meu xará. Você não precisa pedir licença.”. Talvez tenha deixado o Pedro tentando entender o que lhe disse, parafraseando o poeta.Mas o Pedro, morador atualmente de rua, me pareceu ter condições de compreender.Mantenho a minha utopia.