O encontro com a poesia

Foi tardio o meu encontro com a poesia. Infelizmente. Quanto tempo perdido sem penetrar nesse mundo de deleite, de criação e de sensibilidade, apoiado na valorização estética do uso da linguagem. Ouvia muito falar dela, dos poetas, desde bem cedo. Fixara até o nome de alguns, mais antigos. Cheguei a assistir, em certas ocasiões, a artistas que recitavam com emoção um poema. Beleza!, exclamavam  alguns, aplaudindo, ao final da declamação. Eu ficava apenas a ouvir. Tinha dificuldade de entender o sentido da sequência das palavras. Longe ainda de apreender que, na poesia, “As palavras não nascem amarradas,/elas saltam, se beijam, se dissolvem,/no céu livre por vezes um desenho, /são puras, largas, autênticas, indevassáveis.”

Percebia sim certas repetições de sons. Mais tarde, aprenderia que se tratava de rimas. Pouco mais saberia, no entanto, do que deveria ser a tal de arte poética, a que se referiam os que se dedicavam a analisar o texto versejado. Fui apresentado a alguns outros recursos formais dele, como a metrificação, versos com o mesmo número de sílabas, explicada a contagem delas.

Não diria que foi na escola, ou através dela, desde o antigo primário, que passei a ter encontros, que, no futuro, seriam cada vez mais frequentes, até se tornarem familiares, necessários mesmo ao meu viver, com a poesia.

No primário, é verdade, fui apresentado a um poema de Olavo Bilac, poeta muito conceituado, mas não diria que encontrei a poesia, aquela “chave”, de que fala Drurnmond, em seu “Procura da poesia”. Fui escolhido para, em uma data cívica, recitar um dos poemas bilaquianos.. Me lembro bem dele até hoje. “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!/Criança! Não verás nenhum país como este!” … Recitei-o, bem decorado fora, imbuído do que chamavam de fervor cívico. Bilac era um civilista, me disse meu sempre atento pai. Para mim, Bilac ficou sendo então um civilista, sobretudo quando li uma biografia sua. Não alcançara, no entanto, ainda o poeta, logo, a poesia.

Pois não é que, já no ginásio de outro colégio, um garoto então de seus doze anos, fui convidado por um dos professores a ser nada mais que presidente de uma academia literária, mantida pelo educandário, que tinha como patrono justamente Olavo Bilac, de quem, bem mais tarde, viria a apreciar alguns dos seus poemas. Só fui presidente de nome. Não poderia ser de outra forma. O professor é que, naturalmente, dirigia a academia. Um parnasiano devotado . Me vem a lembrança de que fui levado na época a recitar outro poema bilaquiano, de louvor agora à Língua Portuguesa: “Última flor do Lácio, inculta e bela,/És, a um tempo, esplendor e sepultura”. Sem entender por que a nossa língua seria “inculta” e “sepultura”. A tarefa era memorizar o poema. Bilac, concluía eu, era mesmo um civilista, sempre louvando a pátria brasileira.

Não afirmaria que foi no científico que seu deu, ainda, meu encontro com a poesia, apesar das aulas de Literatura. Quanto tempo gasto, de que não me dera conta na época, memorizando dados bibliográficos de escritores famosos, o nome de suas obras, características gerais de seus textos, tudo isto, diria, “cum absentia” da poesia. “Não faças versos sobre acontecimentos”, chegou a proclamar Drummond antes (anos de 1940) de eu cursar o científico. Ler simplesmente poemas, e inexpressivamente, em voz alta, também não é poesia.

Da poesia, configurada em poemas, era levado a atentar apenas em aspectos formais. E neles não está o essencial da poesia, da palavra poética. Assustava-me, por outro lado, aquele vocabulário pesado dos poemas (mormente parnasianos e simbolistas). Ignorava assim o significado de muitas palavras. Longe de se falar em sentido textual, nem ao menos em sentido figurado. Apenas, classificar, um tanto mecanicamente, as figuras de linguagem. Nomes complicados.

Com um ensino bem deficiente de língua e de literatura, ao longo dos cursos pré-universitários, eis-me a tentar, contudo, o vestibular para… Letras! Prova evidente que, apesar do mau ensino que recebera, acreditava num reino maravilhoso, em que teria muito a aprender e a me deleitar pela vida afora. E estava certo. Iria então encontrar, numa convivência maior com o universo poético, a “chave” para nele enfim penetrar, ao poder chegar mais vezes e mais perto e contemplar as suas palavras, “Em suas mil faces secretas sob a face neutra”.

Minha confiança foi correspondida. Muito aprendi com alguns professores do curso universitário sobre poesia. E também com muitos textos sobre poesia, com análises sedutoras, sutis, sobre vários poemas. Fui ficando entusiasmado e passei a ler, reler e tresler textos versificados de diversos autores, brasileiros e portugueses, atento, atentíssimo, à linguagem deles, à grande diversidade de recursos de que se valiam em seu intento estético. Aleluia! Conseguia ter comigo enfim, não poucas vezes, a “chave” para penetrar no reino poético, para alcançar o seu sentido, a sua densidade semântica, tantas vezes longe da que é normatizada pelo dicionário, no tocante a palavras e expressões. Nascia, enfim, em mim a poesia.

Um poeta, dos melhores, me disse há muito tempo numa livraria, ao lhe passar, tomado pela timidez, a leitura que fazia de um poema seu: a leitura do “eu” leitor, do sentido por ele captado, é a que deve prevalecer. Minha leitura! Me senti, diria, mais livre, para, a partir de algum tempo do passado, ler sofregamente alguns poetas. Me reconciliei com Bilac, me deleitava então com Álvares de Azevedo, ficava seduzido com Raimundo Correia, me encantava com Cecília, me surpreendia com Gullar, ficava tomado pela emoção e deslumbramento com Pessoa. E com o notável lírico que descobria em Camões .

Meu itinerário poético esbarrou, no entanto, algum tempo, confesso, com o Modernismo, simbolizado tão bem pelo famoso verso de Drummond “No meio do caminho tinha uma pedra”, objeto de muitos comentários, até depreciativos alguns, que se aplicavam a ele. Como encontrar a “chave” para a leitura compreensiva de muitos dos poemas que se filiavam a um novo intento estético? Versos sem rima, de medidas bem desiguais, estrofes de formação distinta, palavras de uso corrente e tanto mais. Uma estranheza só em confronto com os movimentos literários do século XIX.

Foi lendo sobre o Movimento Modernista no Brasil, assimilando análises sobre certos poemas, mas, sobretudo, lendo repetidamente composições de vários poetas, escancarando-lhes perplexidades minhas, que fui encontrando a “chave modernista”. Queria, neste cronicar sobre o meu encontro com a poesia, que não lhe faltasse nenhum marco importante, no meu processo de descoberta da poesia.

Tenho certeza, reiterando, de que mais que qualquer curso, palestra, ensaio, aula ou conversa ao longo da minha vida de estudante e de professor, nenhum fator foi tão decisivo para eu obter a “chave” que me faria adentrar em tantos poemas de estéticas tão distintas, como as leituras e releituras sucessivas de muitos desses textos, com destaque inegável, por exemplo, para dois de Drummond, de que os títulos já são indiciadores, “Consideração do Poema” e “Procura da Poesia”, e um de Bandeira, o seu conhecido “Poética”, um manifesto a apontar caminhos para um novo lirismo, o do Modernismo (“-Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”)

Tornava-me, assim, um leitor mais preparado, diria, de poemas de tendências estéticas bem distintas, a me abrirem então o caminho para penetrar neste reino especial de palavras, com associações semânticas e fônicas inesperadas, entrando num mundo de magia e de arte. Os poetas pensam, porque sabem acima do apenas banal. Ocorria-me este verso de Drummond: “É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio”.

O encontro, em livrarias e em ruas do Rio de Janeiro, com algum poeta conhecido sempre me emocionou. Vontade de falar com ele, de, ao menos, lhe dar uma boa tarde. De lhe dizer: – Poeta, conheço e gosto de muitos de seus poemas. A timidez, naquela época afastada, me impedia. Bandeira e Drummond, poetas que abrigo no coração, eram os que com maior frequência encontrava. Com Bandeira, em certa livraria, quase venço a timidez e lhe pergunto: – Poeta, tem ido a Pasárgada? Já num encontro com Drummond, em outra livraria, ocorreu-me a indagação afinal

 não  formulada:” E agora,José? … José, para onde?”