Entre o Céu e a Terra

Meu amigo, não sei aí, mas por aqui tudo mais ou menos na mesma desde quando nos deixou, há um ano, creio que não oferecendo maior resistência numa noite de verão que se prolongava demais. Noventa anos deve cansar, não é? Não lhe tenho escrito, é verdade, mas sabe como aqui as coisas são corridas, ou como a pasmaceira, com a idade, vai tomando conta da gente.

Preciso é perder esta mania de falar em idade, em tempo, com o amigo. Categoria que passou a desconhecer. Não imagino como seja por esse seu mundo atual passar o tempo. Como? se não há tempo? E tantas outras mais categorias, como verão, inverno… Um simples bom dia ou boa tarde. Feliz aniversário? Feliz Natal? Noite de verão: que sentido tem agora para você? Conseguirei um dia conversar com o amigo não me utilizando de categorias deste meu mundo? Muito difícil. Afinal, aí há categorias? Me bate a curiosidade. Curiosidade apenas, fique claro…

Deve ter levado para aí aquele sorriso tão seu, que conquistava a todos. Quando não o estampava, você não estava bem. Creio não ser possível ficar imitando as almas que por aí flutuam, em seu descanso eterno. Por aqui você fazia sucesso, sucesso mesmo, com as suas imitações. Não, não, não nomearei as pessoas que você imitava, divertindo tanto a gente. Quantos colegas! Sempre lhe disse que devia explorar esta sua veia artística. Sei bem que certos ambientes exigiam respeito. Não comportavam brincadeiras. Penso em alguns amigos nossos. Deve estar rindo agora, te conheço. Com alguns nem mesmo umas tiradas de humor fino. Como é por aí, amigo? Vocês falam? Ou só contemplação? Não te cansa?

Mas você deve estar mesmo é querendo mais notícias daqui. Eta mundo cada vez mais complicado, compadre. Miséria crescente, que tanto lhe tocava o coração. E pertinho da gente, as ruas e avenidas com crianças e adultos, em número maior, jogados pelo chão. Violência também. Para nós, miséria sempre foi violência, e brava. Parece aumentarem os casos de marido matando a mulher ou a ex-mulher. Feminicídio, eis uma palavra da moda por aqui. Está em tudo o que é mídia. Pois é. Nunca alimentamos tais horrores, não é verdade? Sentimentos homicidas no tocante à nossa cara metade? Jamais. Quer dizer, momentos de irritação, ah! muitos, não é? Irritação, intolerância… As reticências não abrangem, longe disso, sequer pensar em feminicídio Também pudera: tínhamos um contrato nupcial, com vigência superior aos cinquenta anos.

Hoje muito do que ocorre entre pessoas ou grupos é resolvido na base da agressão verbal ou física mesmo. Você viveu, pareço esquecer, este mundo tal qual hoje ele se apresenta a nós. Mas vem piorando, e muito, amigão. Passei até a sair menos, eu que sempre gostei do movimento das ruas, com medo de ser assaltado. Os de idade maior são bem mais visados, os eleitos pela bandidagem, pela fragilidade que salta à vista.

Meu companheiro: ainda bem que não aderiu ao mundo digital por aqui. Muita tecnologia. Às vezes me sinto um debiloide. Qualquer criança me passa uma rasteira. Preferiu flutuar nas nuvens de cá, ouvindo os nossos sempre presentes cancioneiros. E guardou na memória e no coração tantas músicas, que cantarolava baixinho e afinado. Acompanhava as artes, a arte poética em particular, desde as suas queridas musas do Lácio, passando por textos de monjas medievais, a voz camoniana, até chegar ao nosso vate moderno do “E agora José?”.

As chamadas redes sociais, amigo, são cada vez mais território livre da política, com um “p” bem minúsculo. Textos quase sempre agressivos, tolos, repetitivos, sem fundamento, generalizantes, recheados de palavras e expressões vulgares. Mesmo os que têm um propósito galhofeiro longe estão daquela sua fina ironia, captada através de um sorriso também fino e sensível.

De novo mesmo o que paira por aqui é a minha imensa saudade do amigo. Sua ausência física não afasta de mim a sensação de um vazio sem tamanho. Encontrar alguém com quem possa conversar como fizemos durante anos e anos? Não me iludo. Firmamos hábitos hoje impensáveis. Já tarde da noite, na já quase vazia Praça XV de então, vindos ainda de barca de Niterói, ficávamos, por mais de uma hora, trocando impressões sobre tudo. De quanta gente falávamos mal. Que pernas resistentes tínhamos. A travessia da barca não era suficiente para falarmos de tanta gente. O tempo era pequeno para nossas conversas. A ponte acabou com aqueles bate-papos inesquecíveis. Nenhum celular para nos incomodar. Mesmo o enorme crescimento do nosso Instituto de Letras passou a impedir que nos encontrássemos lá com frequência, em hora vaga.

Uma descoberta recente, amigão. No seu sepultamento (como doeu!), é que descobri que os jazigos de nossas famílias são próximos, localizados numa mesma área do cemitério. Cheguei, apesar da comoção do momento, a sorrir. Uma nova Praça XV? Não estou dizendo que é para agora, viu? Aguarde um tempinho. Mais: entre os nossos jazigos, descobri o da Marília Pera, que tanto admirávamos, cantando, por exemplo, o repertório da Dalva de Oliveira. Teremos serestas? Vou voltar para a minha fonoaudióloga, para preparar as minhas cordas vocais. O público nosso vizinho vai adorar. Espero não haver daqueles chatos que vão falar na lei do silêncio. Sem sentido, me parece, no caso.

Não quero, contudo, amigo, encerrar esta minha cartinha, sem que a curiosidade sobre seu mundo se volte a me aguçar com outras indagações .Como são os santos? Acessíveis? Ficam mesmo atentos aos que daqui tanto rezam para eles? Ou nem estão aí? Têm uma boa convivência entre eles? Competem entre si? Sou o que mais recebe pedidos, fica proclamando Santo Antônio? Como foi recebido por São Pedro? É aquele mesmo bonachão que recebe Irene? “Entra, Irene. Você não precisa pedir licença”. E o seu grande amigo Santo Agostinho? Têm trocado filosofias? Preconceito nenhum, não é, compadre? Era só o que faltava. Tudo corrói de curiosidade os mortais.

Quando estou numa situação embaraçosa nesta vida, e tantas vezes estou, me lembro de você. Amigo amigo, dá para interceder aí por mim? Tem algum santo que você já tenha conquistado? Ou santa? Santa Terezinha é simpática? E São Jorge é mesmo valentão? Se encontrar com São Braz, e lhe for possível, peça uma atenção dele com a minha garganta.

Por fim, claro, você vê a Deus? Não é o que a religião proclama entre nós? Se tenho toda a certeza de que está aí no espaço celeste? Sim, certeza absoluta. A vida que levou aqui é garantia desta certeza. Quando um amigo, amigo mesmo, chegar aí, pode te dar aquele abraço? Pediria a ele para te abraçar. Ou temos de controlar nossas emoções? Ou elas cessam?

Não deixarei de te escrever. Sinto que você me responde, não em português ou no seu adorado latim, mas em outra língua. Responde numa linguagem compreensível, universal. Não imediatamente. Ocorre, às vezes, quando perambulo pelas ruas, ou quando estou lendo, ou quando quase adormecendo. Situações de paz, em geral, intensificadas pelo seu sopro, logo reconhecido por mim.

Sempre zelamos um pelo outro. Não parece agora diferente, não é? Cada um no seu mundo. Assim, o nosso cuidado pelo outro permanece, é permansivo, termo que aprendi com você. Seus grandes olhos, sempre bem abertos para todos e para o mundo, devem acompanhar o que por aqui se passa. Os meus têm a sua imagem gravada. Amigo, amigo: continuemos o que fomos um para o outro numa longa jornada: amigos.

Beijo-lhe o coração.