É uma pena não viver

Esta imagem tem um texto alternativo em branco, o nome da imagem é cropped-carlos-eduardo-uchoa-1-150x150.pngTem escrito? Você ainda escreve? Vez por outra, ultimamente, me chegam tais indagações. O “ainda“ me parece esclarecedor sobre o porquê algumas pessoas explicitam a dúvida de se um homem, avançado nos aniversários, se mostrar ou não capaz de continuar a escrever os seus textos. Na verdade, a curiosidade costuma estar presente no imaginário da gente: como é viver a idade avançada? As limitações desta fase da vida é o que se quer, em geral, ficar sabendo. Uma antecipação ansiosa com que lá na frente se terá de conviver, caso se chegue lá…

Sobre a velhice, nada mais adequado mesmo do que dar a palavra a um idoso. Ele é que a conhece melhor. Ninguém melhor do que ele sabe o que se passa nela e com ela. Saber feito. Nós todos mostramos, com o avançar dos anos, certo temor por esta fase da vida, assaltados tantas vezes por questionamentos meio sufocantes: ela será curta ou longa? Sofrida por imaginar doenças sem cura, cirurgias arriscadas?  Mas já não se arrisca, em geral, cogitar um novo amor para o outono da vida, ou imaginar as delícias de um netinho. Enfim¸ continuar a usufruir de prazeres mais simples da vida. Uma alegre conversa descontraída, o escutar as músicas preferidas, um passeio de carro pela cidade, a leitura de poemas que toquem a alma e… o escrever. Viagem? Vai ficando mais dificultoso. Para o velho , qualquer distância parece  muito mais longa, vai ele  ficando temeroso de se afastar dos seus domínios .Se for para um local desconhecido , aumenta sua resistência.

 Continuamos a escrevinhar? Seus textos têm aparecido pouco, mesmo no  face , dizem amigos e colegas. Sentem a falta de minha fala escrita? Será? Os avançados em aniversários podem manter-se, palavra de um idoso, ainda ligados a certas belezas da vida, até com maior apuro em seus sentimentos.  Não encaramos, no entanto, este outono terreal como a melhor fase da existência. Rubem Alves sustentava , já muito doente, a beleza da vida, lembrando o que o poeta Robert Frost pediu que escrevessem na lápide do seu túmulo: ”Ele teve um caso de amor com o mundo”.

Mas, quando começa a velhice? A velhice chega, quando cada um passa a senti-la. Pode ser num dos enta- (quarenta, cinquenta, sessenta, setenta, oitenta, noventa!). Até antes dos quarenta. A caminhada até os 100 anos deve ser uma corajosa conquista, não um planar aleatório.Exige perseverança na vida .Chegar à velhice sinaliza uma corrida mais longa pela vida .Corrida, para muitos atualmente, de considerável  distância, e sempre com obstáculos. A exigir, pois, um bom atleta. Um mistério: como uma pessoa de aparência muito frágil chega a uma idade tão avançada; outra, como que vendendo saúde, vai se embora assim de repente, ainda no prefácio do outono, surpreendida num momento qualquer da vida.   Respostas só com a ciência.

 Ao se chegar a uma idade avançada, a cabeça da gente vai naturalmente, como o corpo, passando por alterações gradativas. Na mobilidade física, ah, os joelhos!, nem se precisa aludir à dificuldade do correr, do andar depressa, do subir escadas com muitos degraus; um simples virar mais abrupto da cabeça para um dos lados, ou para cima, fica bem mais dificultoso, como o abaixar-se para pegar um objeto no chão.A perda de alguma faculdade humana , como a visão ou a audição , deve deixar qualquer um muito triste.

 Já o cérebro, ah!  O cérebro, nossa sede pensante, a partir de certa idade, começa a apagar nossas lembranças, mesmo as recentes. Nossa memória está péssima, se ouve muito dizer entre os idosos.   Já nos aconteceu conversar um bom tempo com um conhecido, que encontramos na rua, e não conseguirmos lembrar o seu nome. Situação embaraçosa. O nosso museu de nomes vai encolhendo, às vezes depressinha.Até nomes comuns.  As interjeições se tornam mais freqüentes…

 Mas tudo que foi dito, de certo modo, é sabido, ou pressentido. O que não parece tão bem sabido, ou pressentido, é que a idade avançada apresenta sim variadas possibilidades de ainda se usufruir o bem viver. Ocorre-me o título de uma primorosa biografia do grande humanista Rubem Alves, escrita por Gonçalo Junior: ”É uma pena não viver”, título muito expressivo para traduzir a paixão do escritor pela vida.  Ele continuava a gostar de viver, mesmo em sua longa enfermidade, ainda que  com a expectativa sempre de que tudo pudesse terminar no amanhã.

Sobre a escrita de textos, quaisquer que sejam, na fase derradeira da existência, a palavra de um idoso, que está sendo inquirido sobre a  continuidade da escrita em sua vida atual, pode ter a sua valia.

Para começar, escrevemos nossos livros após a aposentadoria, com exceção de um. Das obras editadas, uma reunia artigos já publicados em alguns periódicos.  Portanto, no nosso caso, a aposentadoria, sempre sendo adiada, já pode ser lembrada como produtiva. Amadurecimento maior? Conhecimento mais abrangente? Fatores a não serem desprezados. Mas o que deve também ser lembrado é o fator tempo. Sim, livre dos variados encargos da universidade, passamos a contar com o tempo muito mais livre. E a cabeça mais acolhedora para ideias,  reflexões, que nos rodeavam há tempo.

Os livros foram nascendo, então, sem precisarem de fórceps, guardados que estavam dentro de mim. Nada de dores no parto desses filhos. Alinhavar o texto escrito com muito mais facilidade, consultando, nos livros técnicos, a bibliografia , até mesmo para as numerosas e necessárias citações . Fomos ficando, seja dito, surpresos com o nosso desempenho. De tal modo que partimos até para , ainda  meio sem jeito , escrevinhar crônicas , me encantando com uma nova linguagem .Tempo de colher, dizíamos, após uma tão longa  semeadura.

Permanecendo ainda na corrida mais longa da vida, o desejo de escrever foi, não negamos , diminuindo. Com a pandemia ,ficamos apenas com as crônicas,  acolhidas algumas no nosso blog .Pensarmos em publicação? Como? Livrarias fechando, editoras falindo.  Mas a vida, esta continua. E a escrita ainda sobrevive em nós. O nosso casamento com a vida se mostrou estável. Com alegrias e decepções.  Apesar de tanta coisa, apesar de tanta coisa … “É uma pena não viver”, ainda mais continuando a escrevinhar.