Deixa a vida me levar

Um amigo me lembrou outro dia que não tenho comentado os filmes a que assisti  ultimamente. Não tem ido ao cinema? Imagina , se vou passar sem ele, umas duas vezes por semana. Aos sábados então, com minha mulher, é costume assentado há uns vinte anos. Falta de tempo para escrever? insistiu o amigo. Aposentado, mas não inativo, comecei a responder, aprendi a fazer o meu tempo.

Depois de certo período meio perdido ante o que fazer, eis que atualmente até que estou gostando de como aproveito o meu dia. Não é falta de tempo não, é que hoje em dia agendo minha vida de outra maneira. Atendendo, no possível, repito, no possível, ao que, em cada momento, pareço carecer. E a gente sempre carece. Posso agora acordar a hora que quiser. Mas costumo acordar cedo. Hábito de anos. Uma parte de mim me puxa para a cama, outra parte de mim quer sair da cama. Procuro atender a parte de mim mais forte naquela manhã Antes, anos a fio, não tinha esta coisa de uma parte e de outra parte de mim. Tinha de levantar.

Quando me levanto, vou tomar meu café, sentadinho e na maior calma. Nada de café em pé, na maior pressa. Gostoso mesmo este café matinal.. Depois do café, uma das delícias do dia: ler o jornal, sem ficar olhando para o relógio a cada cinco minutos. Leio tudo o que me interessa, sem afobação, dividido não mais entre o prazer e o compromisso. Passei a ficar mais por dentro do que se passa pelo mundo. Até desta coisa chamada Oriente Médio, de ignorante quase completo, sou hoje um cidadão com certo conhecimento desta região complicada do mundo. Acompanho também, sim é verdade, as escaramuças do nosso poder judiciário. Não podemos negar que os ministros do Superior se tornaram pessoas marcadas pela celebridade. Em suma, fui durante  tantos anos muito linguista, e pouco muitas coisas. Hoje ostento um lastro cultural mais satisfatório.

 Se me bate, e bate geralmente, certa sonolência após este exercício de leitura crítica , me deito. Por que não? Agora, sou meu próprio patrão. Se não quero fazer nadinha, fico sentado numa confortável cadeira do papai, deixando que a memória e a imaginação me conduzam para qualquer onde e quando.  Se é a vontade de escrever que me diz bom dia, lá vou  eu para o computador teclar o que me ocorre no momento. Se me assalta o desejo de ler ou reler o que seja, me ponho a procurar o livro ou o jornal sedutor. Se me flagro inquieto, caio na rua para ver sei lá o quê.  Diria que para observar pessoas e coisas que me prendam atenção. E coisas bem variadas.  Em Copacabana então! Mas se fico atiçado para conversar com alguém por telefone,   não me retraio.

Sim, ainda converso por telefone, afinal sou gente antiga, com certos hábitos já tidos talvez como estranhos ( já ouvi uma amiga me dizer, mais de uma vez, você é a única pessoa que me telefona)  Sou mais sortudo: tenho alguns amigos, poucos, que me ligam sempre, sinal de que ligam para mim, não é? Claro não deixei de ter rotinas, além das matinais, algumas também prazerosas. Como disse Barthes, há uma idade em que se almeja o máximo de sabor possível. Poder? Para quê? Primeira dessas rotinas: o futebol pela televisão. O antigo Maraca mora em mim ainda. Mas não existe mais. Hoje fala-se  em arena, não tem mais arquibaldos, nem geraldinos. Tenho assinatura da Premiere, renovada todo ano, para assistir, se quiser, a muitos jogos.  Sim, rotina com o cinema,  já destaquei.  E, nos últimos anos, com a atividade física, afinal, compromisso com o meu corpo, sobretudo com as pernas para elas não tombarem de vez, pelo menos por enquanto. Ainda é cedo. Assim, elas vão me levando para onde quero ir, o que é muito importante. Vida que segue , não se pode perder o elã.

 Puxa, amigo, te abandonei por uns bons minutos, falando sem parar, depois daquelas suas duas perguntas que pode parecer terem ficado esquecidas. A um aposentado não se deve ficar indagando, sobretudo sobre a vida que leva. Como perder tal oportunidade de falar de si, sobre o que tem feito? Não mais indagações depois que se diz “sou aposentado”. Este foi seu erro. O que o aposentado mais quer é poder falar que faz coisas ainda, sim senhor, pode acreditar. Mesmo  que um se locomova de muletas, não costuma ser um ocioso, procura saber até sobre  o Oriente Médio.