“Bom dia, tristeza”

Ao acordar hoje, quieto na cama, com dificuldade de encarar o dia que nascia , me veio à lembrança o título de um romance lido da escritora francesa Françoise Sagan, que escolhi para encabeçar uma crônica que apenas se esboçava em mim.

Sim, amanheci triste. Não bastasse esta pandemia que parece não ter fim, que há um ano vem transformando o mundo , tornando-o mais cruel,mais temeroso, mais desigual, menos criativo,menos participativo, menos humano, fui ontem surpreendido por uma notícia que me deixou atônito de início e, depois que o telefone foi desligado,arrasado de todo.

A esposa de um grande amigo meu me comunicava de Brasília o falecimento do amado marido, com quem eu falava sempre por telefone. Um AVC fatal. Noite mal dormida, um despertar de angústia.

Em tempos outros, ganhei três inesquecíveis amigos. Um foi meu professor particular de Latim,ainda eu muito jovem, sobre o qual já escrevi tanto. Morreu, após uma vida longeva, há três anos. Mas não nos separamos. Conversamos ainda. Ouço sua risada gostosa .Vejo seu semblante com nitidez.

O segundo foi meu colega de turma na Faculdade Nacional de Filosofia durante quatro anos.Todo dia.Trabalhando em instituições distintas e morando em localidades distantes , não dava para nos encontrarmos com frequência, depois de formados. Mas isto não impedia que a nossa amizade se mantivesse sólida. Ao ganhar certo título na universidade, foi logo me dizendo que não iria à cerimônia: seu coração não aguentaria, como não aguentou vários anos depois. Não vinha bem, me confidenciava.  A esposa dele me comunicou por telefone a sua morte. Confusa, se esqueceu de me avisar.Só uma semana depois.Passaram-se alguns anos, mas ele continua presente em mim.

Por fim, meu amigo de Brasília . Amigo desde o tempo de ginásio. Após uns bons anos em que nos desencontramos nesta vida, eis que, surpreso, um dia, em 2004, recebo um telefonema seu. Estava no Rio. Quisemos nos ver logo.Coisa de minutos,e estávamos sentados num bar de Copacabana. Nos mantivemos calados, de início. Um turbilhão de lembranças tomava conta da gente. Desde a adolescência. A sensação de duas jornadas cumpridas. Famílias constituídas, jornadas profissionais bem sucedidas e aquela vontade forte de nos revermos, sabermos muito um do outro.A saudade da Tijuca onde morávamos. Das ruas, dos cinemas, do colégio, dos companheiros, das raparigas em flor.

Em poucos minutos, o desenrolar de duas vidas que nunca, na verdade, se separaram.Caminhamos os caminhos que nos estavam reservados a caminhar.Caminhantes fiéis aos nossos propósitos de vida, nascidos da formação que recebemos. Pudemos ainda, durante quase vinte anos, voltarmos a estar juntos, lado a lado, pelo telefone amigo, ou pelo mundo digital, o mundo novo que surgira.Ele constituindo um acervo de gravações musicais raro, eu ainda me dedicando aos livros.

Meu amigo era pessoa rara, que mantinha a humildade como virtude, apesar dos altos postos que alcançara na magistratura. Temia a maneira de morrer, nunca a morte, ainda que sempre exaltando a vida.Para que dormir tanto, se teremos tanto tempo para descansarmos?Amava, pois, a vida.

Com a perda de um amigo assim, se morre também um pouco. Aqueles papos. Aqueles telefonemas Aquela confiança.Aquela segurança de se  contar com o outro. Aquele…Aquela…

Querido Lincoln: a nossa amizade permanecerá.