Os dias se sucedem mais velozmente, parece um consenso, à medida que os anos passam, com a sensação então constante da finitude da existência, da indagação inevitável do até quando. A história de cada de nós se desenrola como um filme, com personagens e situações selecionadas, sabe-se lá como, a marcarem tempos idos e vividos, guardados nos escaninhos da memória.
Sentado numa acolhedora poltrona, fiel companheira, no espaço tão meu do escritório, desarmado de qualquer inquietude do presente, me surpreendo ao entrar num jogo cujas regras a gente não domina, viajando por um mundo que vou re-conhecendo. Lembranças tidas como sepultadas, como a de certo colega não tão colega assim, daquele tio que de sempre fui distante, de um ou outro ex-aluno pouco próximo de uma relação afetiva comigo. A minha memória ativada, olhos abertos do meu mundo interior, vai acompanhando as cenas que, para aquele dia, foram programadas, não sei como não.
Me concentro naquelas que certamente marcaram de alguma maneira a minha viagem . Encontros e desencontros. A vida é tecida assim. Lembranças muito diversas me afloram: as que me impelem a virar a cena do filme, por nada me dizerem, e as que tento mantê-las presentes, sopradas sim pela saudade, ansioso para se tornarem de novo atuais em minha vida, revivendo-as. O querer voltar, o pacto com o já acontecido, ainda que com a dor que não se apagou.
Me vêm aqueles versos da canção sofrida : “ A saudade bateu, doeu/ A saudade bateu/ A saudade bateu, doeu/ A saudade bateu, valeu.” Sim, mesmo batendo, doendo, a gente quer que a saudade não morra. É o que permanece, afinal. Daquele encontro, daquela noite de paixão , daquela leitura, daquela viagem…Testemunha o poeta: “a saudade é no amor a cadeia mais pura”. Quem não tem a companhia da saudade? Por que ela seria um dos temas mais recorrentes, por exemplo, de nosso cancioneiro popular? Companhia das noites de frio: ”A saudade nas noites de frio/Em meu peito vazio virá se aninhar”. Reiterada, no entanto ,a identidade frequente dela com a dor: “ A saudade é dor pungente, morena/ A saudade mata a gente, morena/A saudade é dor pungente, morena/A saudade mata a gente”. Pode-se até pressentir a sua desejada aproximação, como nos versos musicais “Tô com sintomas de saudade/ Tô pensando em você”. Porém, a dor, tantas vezes dilacerente , de certo é companhia bem presente da saudade, pelo inconformismo da perda, como nesta canção que o tempo não apagou: “ Bandeira branca, amor/Não posso mais/Pela saudade que me arrasta/Eu peço paz. / Saudade mal de amor/Saudade que dói demais. “
Saudade de tudo pode nos bater. De um cãozinho que brincava com a minha vida, daquele mar de águas mornas e tranquilas, de músicas românticas que não se ouvem mais, de certo baile de fantasia , daquele prato pintado que habitava um móvel da sala, do longo convívio com um amigo querido, das perdidas ilusões… Saudade do que não chegou a ser, saudade do que não vivi , saudade de quem não conheci… Contudo, é preciso saber conviver com a saudade , para que ela não seja sempre “ a saudade mata a gente”, saber , com o tempo , por que não? , tê-la como uma companhia a nos proporcionar leveza , certo sorriso íntimo de reconhecimento por tantos bons momentos vividos ,não mais pois a dor, porém a paz, a serenidade, o esperado conforto.
Estou , em relação aos meus mortos queridos, em um aconchego com eles. Estamos ainda juntos . Não há dor, não há perda. Ao contrário, a saudade nos une pela lembrança de tantos e tão diferentes momentos vividos .A saudade que dói demais pode vir a ser sim a saudade que traz a paz , o conviver macio com ela .