Era bem miúda. Baixinha e magrinha. Idade? Ninguém lhe perguntou um dia. Impunha respeito. Não dava mesmo para precisá-la. Com o correr do tempo, naturalmente envelhecia, embora sem maiores problemas de saúde .
Anita ( “pequena Ana”) era seu nome. Anita Lopes, me lembro bem. Foi para nossa casa quando minha irmã e eu éramos crianças : eu, com cinco anos, minha irmã, com dois. Meus pais trabalhavam fora, servidores públicos federais, e Anita, indicada por uma amiga da família para tomar conta dos dois irmãos.
Na verdade, fazia o serviço todo de casa. Muito ligeira, não muito falante, ainda arranjava tempo para nos levar até a praça Saens Pena para brincarmos. Chegamos também a ir aos cinemas da Tijuca, e até a programas de auditório de rádio nos levou. Vibrávamos por conhecer de perto certos artistas..
De início, estranhei a mudança para um apartamento pequeno, pois tínhamos morado até então na casa dos meus avós maternos: casa muito ampla, com bom quintal e simpático jardim, e muita gente reunida, numa família numerosa. Estranhei até a comida .Me recusava a comer.Mas a fome batia, e eu acabava comendo., sob certo protesto.No entanto , não demorou muito para seu paladar se impor.Na verdade, cozinhava maravilhosamente .Sempre ligeirinha, mesmo um feijão com arroz tinha um sabor só dela.Uma delícia. Quem quer que fosse lá em casa apreciava, e muito, a sua comidinha.Sabia agradar os irmãos, pondo nos nossos pratos aquela batata frita, aquele ovo caprichado…
Não tinha nada de boba. Acompanhava com paixão a política do tempo. Não foram poucas as vezes que, durante o almoço, nos contava histórias que prendiam a atenção dos irmãos. Sua narrativa era deliciosa. Eta vida boa: comida gostosa e historinhas cativantes.
Tinha a sua personalidade, lá isto tinha., que se mostrava forte, quando necessário. Reagia, com firmeza, com aquele seu fisicozinho, em contextos diversos: numa feira, num entrevero com um vizinho… Argumentava com coerência, pondo os necessários pingos nos i. Certo dia, não sei por qual motivo, se desentendeu com uma vizinha. Mulher grandona , corpulenta. Não é que a pequena Ana se armou com uma faca grande de cozinha, como que a avisar à vizinha que não a temia. Destemida a pequena Ana.
A pouco e pouco, passou a ser considerada uma pessoa da família, ainda que se portasse sempre com humildade.Nunca aceitou fazer as refeições sentada à mesa conosco.Depois que mudamos para um apartamento maior, dormia no quarto da minha irmã, de quem cedo se tornou uma segunda mãe, além de madrinha de crisma.
Não vou aqui negar que, no tocante à relação das duas , fui tomado, a partir de certo momento, por algum ciúme, me sentindo preterido. Um pouco mais maduro, me veio a compreensão: passava muito tempo na rua, nos tempos livres, com uma turma de amigos, a conversar,a jogar bola…A rua era como um clube. Natural que a relação entre minha irmã e Anita fosse se estreitando mais e mais , com a afinidade e o companherismo nascido entre elas. Entrando na idade adulta, meus problemas e objetivos eram outros.
O ciúme é um bicho humano, que fica nos rodeando sempre. E por que não também a inveja, da confidência de que minha irmã gozava com ela? Sentimentos da nossa condição humana, nem sempre , contudo, perceptíveis e aceitos por nós, difíceis mesmo de serem assumidos. Sentimentos inferiores! , me disse alguém .Eu nunca senti inveja, nunca mesmo, completou.. Ora, ora, em que mundo vives? me deu vontade de perguntar .
A história de vida de Anita (a “pequena Ana”) , antes da sua chegada à nossa casa ,ficou envolta em mistério, em muito mistério. Era natural do Espírito Santo, da cidade de São Mateus. Por que veio para o Rio de Janeiro, com cerca de seus trinta anos, trabalhar, eis uma intrigante interrogação. Sua família? Reservada, e por razões que certamente lhe pesavam muito, nunca falou nada. A minha família sempre a considerou. Mas nunca chegou a lhe fazer certas indagações. Respeitava seu silêncio. Devia pertencer a uma família de classe média .Decepção familiar ou amorosa?
Talvez, com mais de setenta anos, contraiu uma doença fatal. Sofreu. Recebeu da família o tratamento médico com que , à época , se contava.Não se queixava.
Senti mais do que imaginava com o seu falecimento. Afinal, foram trinta anos de convivência .Eis, pois, um encontro longo, com as oscilações da vida entre cores e dores.Encontro de aprendizagem para mim, com uma pessoinha que dedicou a sua vida a uma família, de início totalmente desconhecida, a que se agregou com muito bem-querer e humildade. Eis a ‘pequena Ana” que conheci e que me faz pensar nela até hoje . Parte da narrativa de sua vida ficou desconhecida. A “pequena Ana’ guardou, até o fim, os seus segredos capixabas.