A linguagem poética em Eugenio Coseriu
Carlos Eduardo Falcão Uchôa
(Universidade Federal Fluminense)
RESUMO: A tríplice dimensão da linguagem de Bühler. Análise crítica do modelo proposto por Jakobson. A poesia como atividade de um sujeito universal. O “bem dito universal”. Discurso informativo e discurso poético. O sujeito de ambos os discursos. O significado2. A plena funcionalidade da linguagem poética.
Palavras-chave: Coseriu ; discurso poético; sujeito do discurso poético; a construção do sentido.
Eugenio Coseriu, ao longo de uma das mais extensas obras no campo da Linguística da segunda metade do século XX, em que focaliza, pode-se dizer, todos os campos desta ciência, visa a compreender a realização inteira da linguagem, com mais de trezentos textos publicados, muitos dos quais livros. Deixou ainda inúmeros inéditos, que, após a sua morte em 2002, já começaram a ser editados, como “Linguagem e discurso”, em que, através de alguns ensaios, focaliza o sentido de texto. Esta obra conheceu uma edição brasileira em 2010 (Coseriu/Lamas, 2010).
Podemos dizer que a base do ideário linguístico coseriano, que ele considerava mesmo a sua maior contribuição para a Linguística, é a tricotomia entre os três planos linguísticos, distinção que corresponde à intuição dos próprios falantes, ou seja, o plano ou o nível universal do falar em geral, o plano ou o nível histórico das línguas e o plano ou o nível individual dos discursos. Propõe, desta maneira, o que ele viria a chamar de linguística integral, longe, muito longe, assim, de se limitar ao estudo de apenas um objeto linguístico, como o da “langue”, adotado pelo estruturalismo e pelo gerativismo, com pressupostos distintos.
É certo que Coseriu, por ter sido autor de alguns textos estruturalistas, mormente numa época em que o estruturalismo era a corrente linguística prevalente no mundo, e por uma divulgação muito mal feita de uma parte considerável de sua produção acadêmica entre nós, teve a sua imagem com frequência associada à de um estruturalista, imagem não só parcial, mas falsa, na avaliação de Johannes Kabetec, diretor do Arquivo Eugenio Coseriu da Universidade de Tübingen (Coseriu/Lamas, 2010:7):
É falsa, pois Coseriu apenas tomou a discussão das ideias saussureanas como ponto de partida metodológico, e não a doutrina de Saussure como um todo, ou seja,a linguística de Coseriu não deve ser entendida como mais uma escola linguística dentre as que dão continuidade à doutrina do mestre de Genebra. Coseriu (…) não aceita a parcialização de uma linguística tendo a langue como único e verdadeiro objeto, como propôs Saussure.
O linguista romeno, em sua profícua obra, colaborou, de maneira muito expressiva, com estudos sobre com cada um dos três planos da linguagem: o falar em geral, a língua e o discurso. Em “Au-delà du structuralisme” (1982) e em “O meu Saussure” (2009-2010), por exemplo, se deteve no nível teórico, ou seja, do falar em geral. É neste nível que se concentra a maior e mais importante contribuição de Coseriu aos estudos linguísticos. Já em “Sobre las llamadas ‘construcciones con verbo de movimiento’: um problema hispânico” (1960) e “El gallego y sus problemas. Reflexiones frías sobre un tema candente” (1987), o linguista se ocupa com considerações no nível histórico das línguas. As investigações dele, no nível individual dos discursos, são objeto de acuradas análises, assumindo muitas vezes posições sugestivas, valendo-se de fundamentos filosóficos, aristotélicos, especialmente. Sobressai-se neste campo da linguagem o seu volumoso e denso “Lingüística del texto: introducción a la hermenéutica del sentido” (edição póstuma, revista e comentada de 2007).
Em tão ampla e diversificada obra sobre o universo linguístico, em sua construção global, não poderia Coseriu deixar de tratar do intricado problema da linguagem poética, numa perspectiva crítica sobre muitos dos estudos sobre ela publicados por renomados linguistas, assumindo, em vários pontos, posições até surpreendentes, que procuraremos acompanhar e comentar em nosso texto. Visamos mais aqui, enfatizemos, a divulgar, comentando, ideias centrais do linguista sobre o tema, em geral pouco conhecidas entre nós, do que enveredar por um estudo crítico rigoroso. Por isso, vamos acompanhar de perto os textos coserianos. Suas ideias é que aqui importam.
Em “Lingüística del texto” acima citado, há considerações importantes sobre a linguagem poética. Segundo nosso conhecimento, já tinha publicado o bem anterior “La creación metafórica del lenguaje” (em 1956), com reflexões das mais pertinentes sobre a criação na linguagem; o utilíssimo Tesis sobre el tema ’lenguaje y poesía’, que remonta a 1971, além de “Linguagem e discurso” (edição póstuma brasileira de 2010). Este, uma coleção de ensaios.
Em “Lingüística del texto”,obra mais abrangente, Coseriu toma como ponto de partida para discutir a constituição do sentido do texto o enfoque das relações fundamentais do signo, valendo-se de início do modelo que foi objeto de atenção geral da Linguística ainda da primeira metade do século XX: o modelo da linguagem como instrumento, de Karl Bühler (1934). Segundo este linguista, o signo linguístico é um fato material que estabelece uma tríplice relação no que concerne à sua manifestação, ou seja, funciona precisamente por esta tríplice relação:o falante (o emissor), o ouvinte (o receptor) e os objetos ou estados de coisas que designam o sobre os quais se fala.
Nesta tríplice relação, converte-se o fenômeno sonoro concreto em um signo com três sentidos diferentes. Na relação com o falante, a função do signo seria a de “expressar” ou “revelar” seu estado psíquico, genericamente o seu estado. Podemos chamar tal função de manifestativa. Se o falante revela algo sobre ele (é homem ou mulher, culto ou inculto), se no momento de se expressar se encontra tranquilo ou em estado de tensão, são manifestações de quem fala. (Coseriu, 2007:160-161)
Em relação com o ouvinte a função do signo consistiria em perceber e interpretar o signo mesmo. Mas em outros vários casos pode estimular, incitar o ouvinte a fazer muito mais: calar, fechar uma porta, etc. Ou a tocar a sensibilidade ou emoção do interlocutor. Bühler propõe, num segundo momento, para esta função o nome de apelo; de início, desencadeamento. (Coseriu, id., 161)
Por fim, em referência aos objetos e a estados de coisas, a função do signo consistiria em representá-los (função representativa). Para Bülher a função mais característica e importante da linguagem, como se pode inferir do subtítulo de sua obra clássica: “Teoria da linguagem. A função representativa da linguagem.” (Coseriu, id, ibid.). Coseriu reconhece que a ideia da tríplice dimensão proposta por Bühler constitui uma novidade, aproximando-nos, por exemplo, da complexa constituição do sentido e de uma melhor compreensão da tarefa da linguística do texto (sobre o estrato semântico textual do sentido em Coseriu (UCHÔA, 2020:41-55).
No signo linguístico , estas três funções ocorrem muito frequentemente combinadas. Num simples signo como “Silêncio”, por exemplo, proferido energicamente por um professor numa sala de aula, as três funções podem estar presentes, embora tal simultaneidade nem sempre se manifeste com igual relevância em qualquer signo. A função representativa é que não pode faltar, exceto em casos limite como o das interjeições.
Em 1960, com um ensaio publicado em inglês com o título de “Linguistics and Poetics” o linguista Roman Jakobson parte do modelo proposto por Bühler e o amplia para seis funções, quase sempre mencionadas em compêndios de caráter geral sobre Linguística.
Assim, ele acrescenta três novas funções. Tomemos como primeira a relação que estabelece com o canal ou meio de transmissão da mensagem, que os interlocutores compartilham para decifrá-la Um exemplo do próprio Bühler: “Alô, está me ouvindo? para atrair a atenção do interlocutor, ou confirmar a sua atenção continuada” (1969:126). O linguista alemão chama tal função de fática. Segundo Coseriu, esta função visa a “verificación con el fin de comprobar si se dan las condiciones físico-técnicas o la disposición psíquica para la comunicación” (2007:104).
Jakobson estabelece uma segunda função que se refere ao código mesmo, mais precisamente ao falar sobre o código, função que denomina com o termo corrente de metalinguística.
Por fim, Jakobson defende uma última função, concernente à mensagem e à sua configuração, um aspecto extremamente positivo no seu estudo, função a que denomina função poética. “O pendor(…) para a mensagem como tal, o enfoque da mensagem por ela própria, eis a função poética da linguagem“ (1969:127-8). Coseriu, em sequência ao seu texto que estamos acompanhando (Lingüística del texto), após explicitar e caracterizar as funções da linguagem, no modelo proposto por Jakobson, fala da necessidade de discutir tal modelo ampliado, em relação ao de Bühler, em seu conjunto, “pues se trata de un esquema enteramente inadecuado que se basa en supuestos cuestionables” (id.ibid.).
Coseriu enfatiza de início a intenção central de Jakobson ao investigar as funções da linguagem: determinar a função poética da linguagem. O linguista , segundo Coseriu, silencia ou passa por cima sobre indagações importantes acerca desta função — por exemplo, tem-se com ela uma função a mais que pode aparecer nos textos em maior ou menor medida? Ou ainda, será uma função que nos permite classificar o conjunto de textos do mesmo modo que as outras funções?
Do que expressamente diz Jakobson só se pode inferir, enfatiza Coseriu, que o poético parece consistir no cuidado especial que se põe na estruturação da mensagem do texto, ou seja, há texto poético onde o que está no primeiro plano não é o quê da comunicação transmitida, mas o como é dito, vale dizer, como o texto foi composto harmoniosamente, de acordo com um plano com prévia determinação (Coseriu, id.,166). Eis certamente a mais pesada crítica que o linguista, autor do famoso ensaio “Sistema, norma e fala”, faz ao esquema das funções da linguagem elaborado por Jakobson.
Coseriu não deixa, contudo, de reconhecer, sublinhemos, aspectos realmente positivos acerca das ideias propostas por Jakobson, no tocante à função poética. Assim, releva, já se mencionou, a relação reflexiva do discurso consigo mesmo, apontando o caráter absoluto do discurso poético, isto é, ao fato de este discurso não o ser em respeito a algo ou em relação a algo, mas que encontra a sua norma em si mesmo. Destaca ainda como aspecto positivo o fato de Jakobson falar de uma função poética caracterizadora do texto literário, pois nestes textos ela sobressai, se afirma sobre as demais funções.
Mas a verdade é, pondera Coseriu, que constitui uma dimensão de qualquer texto, ou seja, em alguma medida, pode ser encontrada em qualquer texto, ainda que não seja a função caracterizadora. Por isso, todo discurso poderia ser interpretado “sub specie poiesis”, ou seja, enquanto texto de uma dimensão poética (Coseriu, 2010). Tal presença ocorre, com boa frequência, embora com prevalência da função conativa, em mensagens publicitárias.
Para Coseriu, no entanto, o negativo está presente, conforme já se adiantou, também na função poética de Jakobson, a começar logo pelo exemplo dado, pois o sentido próprio do discurso poético não estaria para ele em sua finalidade, mas na sua estruturação. Assim, num exemplo que se tornou muito conhecido, Jakobson se vale de um slogan eleitoral, presente na campanha eleitoral do presidente Eisenhover, para ilustrar a função poética da linguagem: “I like Ike”. É certo que aqui se concentra a atenção no texto, porque ele está construído da seguinte forma: “I”, ou seja, “eu” está contido em “I ke”, o apelido que é dado a Eisenhover, e “lke” está contido em “like”, de maneira que ocorre uma identificação com ”gostar de”, querer um exatamente como “Ike”, e nenhum outro para presidente (Coseriu, 2010:111-2).
Este trabalho formal, no caso de elaboração muito feliz, deve ser considerado, mas não se trata de uma finalidade poética, ao contrário, temos no exemplo dado um discurso tipicamente pragmático (linguagem usada para fins práticos da vida), não apresentando “Ike” como algo universal,mas apenas um Ike em que se deve votar. Ou seja, o que quis o autor do slogan era compor não um texto poético, mas um texto conativo.
Na verdade, em qualquer texto há a expectativa do que se deve esperar, norma ideal em todo tipo de ação e em todo tipo de produto: uma ponte, um edifício… Deve-se falar aqui da estética menor da vida prática: ao realizarmos coisas, entendemos que é preciso fazê-las bem, de acordo com suas normas intrínsecas, o que não implica em absoluto a universalidade desses fatos, já que eles se mantêm dentro de sua particularidade. A universalidade do fato é um ponto essencial na caracterização da linguagem poética em Coseriu.
De modo que, no famoso exemplo de Jakobson, não se tem “o bem dito absoluto”, que é ”o bem dito” poético, da poesia. Sublinhe-se que “o bem dito absoluto”, ou seja, “o bem dito” no sentido da poesia poder apresentar também o oposto de uma organização simétrica. Assim, um texto totalmente confuso pode constituir poesia, enquanto modelo absoluto de um discurso desorganizado, um discurso intencionalmente confuso (lembremo-nos do teatro de Ionesco).
Descartando a posição assumida por Jakobson, Coseriu enfatiza que os discursos, fatos humanos intencionais, livres, só podem e devem ser definidos, não por sua estrutura, mas por sua finalidade, por sua causa final, determinante de todo o resto, inclusive da causa material, e temos que descobrir, então, por que os procedimentos de expressão se apresentam dessa forma. A estruturação desse material, o material com que se faz algo, está determinado pela finalidade (o material, por exemplo, com que se fabrica uma motocicleta).
De modo que, nos discursos poéticos, a expressão, os procedimentos formais não podem ser o determinante. No exemplo lembrado de Jakobson, a expressão, com sua simetria, procura alcançar, da melhor maneira possível, a finalidade que se quer alcançar neste discurso: propagar o nome de um candidato na corrida presidencial dos Estados Unidos. Logo, repisando, é a estrutura que deve estar de acordo com a finalidade e não o contrário; se não estiver, estará insuficiente quanto à finalidade.
Não pode, portanto, haver dúvida (Coseriu, 2007:168-9) de que a poesia, com seu conteúdo especial, não pode reduzir-se, reiterando, à sua configuração, ao como do que se diz, posto que na poesia a perfeição da configuração, isto é, a concentração sobre a forma do texto, possui uma função secundária. Já Aristóteles, em sua Poética, se sentia obrigado a criticar a prática usual de seu tempo de conectar a medida do verso com o fazer poesia. No mundo leigo, ainda hoje em dia, é comum a noção simplista de que poeta é o que escreve versos, mormente rimados.
Fica, pois patente que o discurso informativo e o discurso literário são totalmente distintos pela sua natureza. O primeiro tem uma finalidade externa, ou seja, instrumental: o falante deve ter conhecimentos pertinentes (a algo) e comunicá-los a alguém. Já o discurso literário tem, ao contrário, uma finalidade interna, sem qualquer fim exterior. Aristóteles acrescenta que podem ocorrer as coisas mais incríveis numa obra literária que correspondam ao que se pode esperar, justificáveis por esta finalidade interna da própria obra. IIustrando: a finalidade de A Ilíada é A Ilíada e não alguma finalidade exterior ou instrumental (Coseriu, 2010:113-4).
Releve-se, ainda, que, nos discursos informativos, o que se comunica não é o fato, mas o conhecimento do fato, ou seja, comunica-se algo sobre algo. Em toda informação se tem um testemunho ou a testemunha é o próprio falante. Assim, se narro para um grupo de pessoas um acidente que presenciei é porque fui testemunha do fato ou dele tive, por outra pessoa, testemunho do fato.
Um exemplo muito feliz de Coseriu (2010:116) para ilustrar a distinção entre linguagem informativa e linguagem literária: uma coisa é Aristóteles contar o que Alcebíades fez e disse certo dia, transmitindo-nos a informação e o conhecimento do fato. Já na literatura, Alcebíades não disse nada, nem mesmo sabemos se ele disse alguma coisa. Trata-se assim de algo que o poeta faz que Alcebíades diga, não de algo que ele disse. Por isso, se pode dizer que na literatura a realidade é inventada e o discurso coincide com essa criação da realidade.
Coerente com esta sua colocação, diz Coseriu que quem fala da guerra, sendo um especialista, fala de algo, e pode fazê-lo muito bem, enquanto o poeta não fala de algo, mas que faz. (id.ibid, 117). Então, o falar do poeta não é “um bem falar relativo“ sobre isso ou aquilo, mas absoluto, ou seja, faz-se a própria coisa. De modo que o poeta não escreve um tratado sobre as guerras, ou uma informação sobre as guerras, mas escreve uma guerra criada com esse discurso absoluto.
Em outras palavras, o discurso poético é “um bem dizer absoluto”, não um “bem dizer” com relação a algo, mas apenas com relação ao próprio dito. No discurso informativo, a informação é avaliada e selecionada de acordo com aquilo de que fala, porque é importante que a comunidade ou parte dela saiba algo do que foi produzido e comprovado.
Em termos coserianos, na poética o sentido (do transmitido) não coincide com o significado da designação (nível da língua). Este passa a ser apenas significante do sentido criado num texto poético, num jogo semiótico. Certas indagações costumam ocorrer nestes casos, como: o que o autor quis mesmo dizer com isso? Trata-se de dizer não como as coisas são, mas de fazer coisas, que adquirem um sentido. Em um poema em que ”noite” tem o sentido de “morte”,o significado e a designação passam a ser apenas significantes para um significado 2.
Os fatos ocorrentes e ditos na obra literária, acrescentemos, são avaliados e selecionados de acordo com a importância geral humana. Mesmo em se tratando de fatos empiricamente insignificantes, podem representar fatos constantes da existência humana e observá-los como uma possibilidade da nossa própria existência.
De sorte que, quanto ao sujeito do discurso, há nítida diferença se se trata do discurso informativo ou do poético. No primeiro, o sujeito é empírico ou relativo. Será o caso, por exemplo, do discurso de um jornalista, que está sempre produzindo discursos particulares e comprovados por indivíduos empíricos particulares, por eles também divulgados. No discurso poético, entretanto, o sujeito é universal, é o Autor, com maiúscula, e não qualquer indivíduo. A situação deste sujeito é eterna, não específica, pois. E mais: enquanto a situação do sujeito empírico é sempre uma determinada situação histórica, a do sujeito de uma obra literária também se encontra numa situação histórica, pois tem a tradição da língua literária que escreve ou do gênero literário adotado. Porém, enquanto obra valorizada esteticamente, esta obra, proclama Coseriu, é assituacional (Coseriu, 2010:119-120).
O sujeito falante do discurso informativo se dirige sempre a alguém, a um público que transmite a informação a outros. O discurso poético, no entanto, não se dirige a ninguém. A citada Ilíada, ilustra Coseriu, não é comunicação com alguém ou a alguém, mas a toda a humanidade, para todos os tempos. No seu bem conhecido poema José, “E agora, José?“, Drummond não se refere a um José específico, nem aos que tenham este nome, mas aos seres humanos em geral. Não importa a língua de que o Autor se vale, porque este é modo de ser universal. “La poesía es la actividad de un sujeto universal, y en momento en que el poeta hace poesia, toma sobre si la subjetividad universal: no es el ya un hablante entre otros, sino que realiza en hablar en forma absoluta (=no relativa a tal o cual circunstancia u ocasión)” (Coseriu, 2007: 173). Enfatiza o linguista, para concluir, que isto vale não só para a essência mesma da poesia,
sino dela arte en general, pues el arte se face de acuerdo con un deber ser que le es exclusivamente proprio, no según un deber ser dado de antemano en virtud de circunstancias cualesquiera, por ejemplo, la posiblidad de ser entendido o el deber de ser intelegible. (id.Ibid.)
Coseriu explicita ainda uma convicção pessoal de que a poesia não está dirigida a outro, pois o que importa é tão somente uma dimensão: a objetiva, ou mais exatamente, a objetivação do sujeito, não a dimensão da alteridade.
Muito antes destes dois textos de Coseriu, de que nos temos valido neste ensaio — “Lingüística del texto” (edição de 2007) e o conjunto de ensaios reunidos em “Linguagem e discurso” (edição brasileira de 2010, com destaque para “Informação e Literatura”), o linguista romeno já escrevera o importante texto Tesis sobre el tema ’lenguaje y poesía’, publicado em alemão em 1971, incluído depois na obra “El hombre y su lenguaje” (1977:2001-2007).
Neste seu denso ensaio, Coseriu tece algumas considerações que reaparecerão nas duas obras destacadas até aqui. Diremos que o ponto fundamental de suas “tesis” está na reiteração de que a linguagem poética ”concierne al mensaje mismo, es decir, como uso lingüístico en el que lo dicho vale simplemente como dicho: de hecho, esto no significa sino que el hablar poético es un decir absoluto” (1977:204).
Neste seu texto, Coseriu focaliza o problema do uso linguístico na poesia, relevando que tal uso não ser um uso linguístico entre outros, mas linguagem simplesmente, ou seja, sem adjetivos, realização de todas as possibilidades da linguagem como tal. O linguista adota uma posição clara a este respeito quando afirma que
“el lenguaje poético no puede interpretarse como reduccón a una supuesta ‘función poética’, ni tampoco como lenguaje ulteriomente determinado (lenguaje + una supuesta función poética)(…) ya que las diferentes posibilidades que en lenguaje se actualizam pertenecen ya lenguaje como tal” (Coseriu, 1977: 203).
Chega-se, assim, à conclusão final, no tocante ao uso linguístido da linguagem poética, que ela “representa la plena funcionalidad del lenguaje y de que, por tanto, la poesia (…) es el lugar del despliegue, de la plenitud funcional del lenguaje (id.ibid).
Deste modo, Coseriu não admite, como muitos estudiosos o fazem, que a linguagem poética seja um “desvio” com relação à linguagem corrente, do dia a dia, entendida como o “normal” da linguagem. Ao contrário, para ele, é a linguagem corrente que representa um desvio (redução) frente à totalidade da linguagem. Naturalmente isto vale para os demais usos linguísticos, por exemplo, o da linguagem científica. De acordo com ele então a linguagem como tal coincide com a linguagem poética, no sentido da utilização de todas as suas possibilidades
Com efeito, qualquer variedade linguística (diatópica, diastrática e diafásica) pode estar presente na linguagem literária. Por isso, vamos frequentemente encontrar nos discursos literários regionalismos, coloquialismos, vulgarismos, neologismos, arcaísmos, sintagmas inesperados… Lembremos, a propósito das possibilidades linguísticas em nossa língua, as “Memórias Inventadas” do escritor Manoel de Barros.
Para Coseriu, os textos literários devem valer como modelos para a linguística do texto, porque representam precisamente o tipo de textos funcionalmente mais rico, pois, nos restantes tipos de textos, se têm de especificar as “automatizações” (”desatualizações”) que intervêm em cada caso, como na linguagem corrente ou científica. Por isso também, é que a Estilística tem principalmente os textos literários como objeto de análise.
Se a linguagem poética não representa, então, uma redução da linguagem, como assevera Coseriu, também ela não acrescenta propriamente nenhuma função, “ya que las diferentes possibilidades que en tal lenguaje se actualizan pertenecen ya al lenguaje como tal” (1977:203).
Referências Bibliográficas
Barros, Manoel de. Memórias Inventadas. São Paulo: Planeta Editora, 2006-2008:224.
Coseriu, Eugenio. Tesis sobre el tema ’lenguaje y poesia’. In: El hombre y su lenguaje estudios de teoría y metodología lingüística. Madrid: Gredos, 1977:201-207.
______. La creación metafórica en el lenguaje. ibid:66-102.
______. Lingüística del texto: introducción a la hermenéutica del sentido. Edición, anotación y estudio previo de Óscar Loureda Lamas. Madrid: Arcos/Libros, 2007.
COSERIU, Eugenio/Lamas, Óscar Loureda. Informação e Literatura. In: Linguagem e discurso. Curitiba: UFPr, 2010:105-122.
Jakobson, Roman. Linguística e poética. In: Linguística e comunicação. São Paulo: Cultrix: 1969,118-162.
Uchôa, Carlos Eduardo F. Competência textual e o estrato semântico do sentido. In: O sentimento da língua. Homenagem a Evanildo Bechara – 90 anos. Orgs: Denise Salim Santos, Flávio de Aguiar Barbosa e Sheila Hue. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2020: 41-56.