A Indesejada               

Há uns poucos anos,  assisti na TV a uma entrevista concedida pela Nélida Piñon em seu apartamento. Seu entrevistador, também escritor , Edney Silvestre, devia ser amigo da romancista , pois a conversa entre eles corria bem solta , como entre dois velhos conhecidos.

Não foi a troca de ideias entre eles sobre a obra de Nélida que mais me prendeu a atenção. Mas o diálogo travado sobre a vida, a vida dela em particular. Nélida, sempre bem falante, sedutora mesmo  em suas falas , observadora atenta do mundo e das pessoas, com suas frequentes tiradas de humor, a tudo respondia com total desembaraço. Nenhuma indagação ficava sem resposta Como a vida era para ela? Com o seu desprendimento bem peculiar, procurava responder a tudo.

Nélida, você pensa na morte? Ora, como na minha idade vou deixar de pensar  nela? Penso todos os dias. Sem obsessão. Explique mais. Penso, por exemplo, com quem vão ficar ou para quem vou deixar as minhas coisas mais  queridas. Não são poucas. O meu cachorro, amadíssimo , em primeiro lugar .Um ou outro quadro. Não precisa tratar–se de algo materialmente valioso. Não. Mas algo  que passei a me afeiçoar com o tempo. Aquela jarra me foi presenteada por uma amiga-irmã. Aquelas xícaras de café que amo tanto por um casal com quem cheguei a viajar. E assim vou, nas visitas diárias a meu apartamento, observando cada objeto. Alguns, irrelevantes para mim, não merecem a minha preocupação. Creio que já pensei em quase tudo. Assim, não perco a morte de vista de uns tempos para cá.

Teme em deixar um livro inacabado? De jeito nenhum, respondeu Nélida com firmeza. O que pude escrever, escrevi. Estão aí os meus livros, os meus textos. Serei avaliada por estes. O que não acabei, não acabei.  Nunca me apresso em terminar uma obra porque estou com idade avançada. Nada disso. Talvez haja quem comentará: viu ? Trabalhou até o fim.

Como vinha eu, na época,  pensando todo dia morte, me pus logo a refletir no que Nélida tinha falado sobre a indesejável.Mesma idade nós dois.E a constatação de que encaramos a morte de modo muito parecido. Não há como escapar dela. Ninguém . Como não pensar nela, mormente em idade avançada? Assistia  toda a razão à Nélida Tenho descendentes em linha direta, não preciso deixar testamento quanto aos objetos que moram comigo.  Que aqueles decidam a divisão entre eles .Ressalte-se  que Nélida e eu gostamos de viver.Idade avançada, tempo presente. A vida é que importa. O bom é mesmo viver, apesar das tempestades a serem enfrentadas no oceano  de nossa existência.Estamos por aqui ainda na vida,com limitações naturais da idade, celebrando-a, curtindo-a, como se diz hoje em dia com mais frequência.

Mas como não pensar na morte, quando sentimos que ela passa a dialogar com mais insistência conosco? Se apresentando mais à gente, com acenos e mais acenos, em aparições reiterativas? Não penso muito em bens materiais, como a Nélida, embora não me deixem de ocorrer também certas reflexões como “que futuro terá  o meu quadro preferido da casa?” O prédio em que moro há 50 anos?

O que mais me dói mesmo, certamente para a Nélida também, haja vista o  apego ao seu cachorrinho, é não poder mais ver as pessoinhas do meu mundo afetivo. Algumas já se fazem presentes apenas na minha memória.  Tanto tempo vivido juntos, nesta roda-gigante que é a existência humana. A girar sem parar, até…  Até o momento irreversível. O apagar das luzes. Luzes? Sim, luzes. O apagar da nossa lucidez