A casa da minha avó

Ampla e larga. E altiva. Sim, altiva.  Sobrepunha-se a um porão alto. Tenho dela umas poucas lembranças. Porém foi nela que começou a se constituir o meu museu da memória. Morei ali até meus cinco anos, no final da década dos anos 30 e início da década dos anos 40, quando nasceria minha irmã. Seria a única casa durante a minha vida. Depois só  apartamentos. Espaço reduzido. Nada de jardim, quintal, árvores… Senti muita falta. Invejava a casa dos vizinhos.  Na casa de minha avó é que fui apresentado à vida. Comecei a socializar-me. Aprendendo a ter contatos, a gostar de pessoas, a conversar, a brincar, a correr, a cair, a rir , a chorar, a telefonar, a observar, enfim, o mundo ao meu redor.

 A casa ficava numa das ruas mais conhecidas da Tijuca, a Mariz e Barros. O número, nunca soube dele. Rua bem movimentada já naquela época.  Ônibus, bondes, carros. Comércio, vários colégios, num dos quais, uns dois anos depois, já tendo deixado a casa, seria alfabetizado e cursaria o então  primário.

 Não sei dizer bem quanto media a casa em sua extensão  e largura.Nunca fui bom nesses cálculos, ainda mais sendo uma criança.Uma grade  longa e alta protegia a casa. Longe de ser uma casa de luxo, uma mansão, como diríamos hoje. Na época, em bairros como a Tijuca, predominavam as casas. Poucos edifícios , assim mesmo de três andares. Muitas das casas eram alugadas por preços comportados para a época. Além disso, famílias bem numerosas dividiam uma mesma morada, de sorte que o aluguel podia ser dividido. Conheci  outras famílias em  que tal acontecia. A Tijuca era um bairro de classe média ,  como seria  nas décadas  posteriores.Só gente mais abastada possuía carro, quase sempre americano.

Ao ingressar na casa, via-se à esquerda um jardim retangular, com vegetação rasteira. Seguindo em frente, se deparava com uma escada, com vários degraus. No seu topo , à esquerda, um terraço amplo, sem cobertura. A porta que nos introduzia no interior da casa situava-se logo após a escada. Todos os cômodos espaçosos, vestidos de muita simplicidade. O meu museu da memória não acolheu o número de quartos. Mas não deviam ser poucos, pois meus avós maternos chegaram aos 12 filhos, com a morte prematura de duas meninas. O tio caçula era apenas sete anos mais velho do que eu. Minha mãe, a mais velha dos irmãos.

Lembro-me que apensa à cozinha havia uma espécie de copa em que alguns almoçavam. No jantar, todos à mesa na sala. Tinha o hábito de me colocar debaixo da longa mesa, com aquela profusão de pés e de pernas. Me distraía.

Sim, havia um quintal, de tamanho razoável. Nele, um pequeno e raso lago, com alguns peixinhos. Certa vez, uma das tias mais moças não conseguiu me impedir de eu saltar do seu colo e lá fui eu cair no tal laguinho. Nada me aconteceu, penso até que me divertiu ,  não à minha tia.

O porão  , alto e  largo. Num cantinho dele, morava um jardineiro, que me assustava sempre. Costumava arregalar os olhos e tinha um cheiro forte de tabaco. Ao  vê-lo, corria me afastando dele.Porém, nunca fez mal a ninguém.

O museu da memória registra uma festa organizada pelas tias lá no porão. Guardei  o evento como uma espécie de teatrinho, com música, canto e dança.Uma alegria só.  Fiquei encantado. Não deu para esquecer.

 A casa era muito movimentada. Pudera. Com dez irmãos! As mulheres predominavam. Eram sete .  Às vezes, à tarde, minha avó recebia visitas. Ficava atento às conversas. Algumas me levavam balas, doces. Adorava.  Atender   o telefone era uma das maiores distrações. Era ele tocando e eu voando para atender.

Como disse, a rua  Mariz e Barros era bem movimentada.Me lembro bem, ficava perto  da grade, prestando atenção aos foliões no Carnaval, alguns brincando pendurados nos bondes. O museu da memória registrou também os cortejos fúnebres. Na época, os velórios se davam mais , quando possível, nas próprias casas. Depois havia um séquito. O carro fúnebre aberto à frente, coberto de coroas. Havia carros fúnebres engalanados , e outros bem simples.O número de carros  que compunham o cortejo variava muito. Quando o cortejo exibia um número alto de carros, me foi dito que o morto devia ser pessoa importante na sociedade. Ficava a contar o número de carros. Uma vez a procissão era tão concorrida, a seguir um carro fúnebre nunca antes visto, que indaguei  de meu pai: é do rei? O Brasil, nosso país, não tem rei, meu filho, sem mais delonga . Fiquei decepcionado. Sem rei?

Ah, meu museu da memória! Podia ter colecionado mais coisas do tempo da casa minha avó.  Em todo museu, me respondeu ele, há uma seleção de guardados, você sabe .Cinco anos é pouco tempo para eu reter mais lembranças. Sou apenas um museu a depender de uma pessoa.  Não sou adivinho.E sabe de uma coisa?  Já estou muito cansado. Só podia lhe dar razão.

Na verdade, como reclamar do meu museu da memória? Ele me faz recordar o início de minha vida, de lembrar cedo de meus pais e irmã, a família de minha mãe, que passaria a se a minha família, centralizada na figura terna e silenciosa de minha avó, minha madrinha, a administrar aquele casarão com tanta gente, de idades bem distintas. Depois, seria minha companheira de muitas viagens.Um amor que permaneceu. O meu museu da memória guardou que eu ficava alegre, mas também triste.Que ria e chorava.Que as pessoas eram diferentes, muito diferentes.O meu museu da memória me faz lembrar das brincadeiras que me divertiam, a mostrarem já que a vida era uma coisa boa, a ser vivida. O museu da minha memória registra que cedo se desenvolveram em mim sentimentos fundamentais como o amor, o carinho, a saudade, o peso enfim das coisas do coração .Tudo tendo se passado na casa de minha avó , minha primeira moradia, berço também do meu museu da memória.