Um tio adorável

Só me lembro mesmo dele a partir dos meus 12,13 anos. Cearense, como toda a sua famlia, era juiz do trabalho, primeiro em Santo André, depois na capital paulista. Ouvia com orgulho que ele era juiz. Homem respeitável, de dignidade a toda prova ,  defensor da Lei… Homem do bem, era a minha avaliação em tempos de juventude .Não dava para ser  de outra maneira.. Juiz!  Era o irmão mais moço do meu pai, família de 13 filhos. Nasceu no dia de Natal este ser humano predestinado a ajudar a  caminhada do próximo.

Ao conhecê-lo, curioso, fiquei observando-o durante aquela visita à minha casa no Rio, o primeiro contato com ele de que me lembro. Alto, de terno e gravata, delicado, simpático, com certa timidez, mas gostava de conversar, de contar e saber de novidades. Ficava eu, de início  , a maior parte do tempo atentíssimo ao que dizia. Vinha pouco ao Rio.. Época de muitas trocas de cartas. .Quando já me encaminhava para a idade adulta , passou a me endereçar cartas, com o que ficava muito contente.Cartas, em geral, rápidas, breves, mas regulares. Vivia muito ocupado.

Falava muito das irmãs, cinco, que permaneceram todas em Fortaleza. Meu pai ia me confidenciando alguns fatos da família. Este tio, com seus proventos, é que sustentava as irmãs. Não era costume na época as mulheres trabalharem fora. Não se casaram minhas tias paternas, voltadas, pela educação recebida, mais para a religião.  Ensinavam , em casa, piano,  faziam uns doces para fora…Não devia ser fácil manter uma família tão numerosa. Preocupava-se o tio em guardar algum dinheiro para as esperadas eventualidades. Assim, ia vivendo este homem, dedicadíssimo à família, que comandava de longe, tendo se dado conta dos problemas que teria para constituir a sua própria família. Não lhe faltaram moças casadouras (ele me confidenciava muito reservadamente), mas ele não conseguia superar a expectativa dos problemas que teria certamente pela frente. Era um homem por demais prudente.

A minha avaliação da juventude, de que o meu tio devia ser um homem do bem, se manteria por toda a minha vida, até o seu falecimento aos 86 anos..E não por ser juiz .Era intrinsicamente um ser humano admirável , correto. Bem mais próximo a ele, pelas viagens repetidas ( não tantas ) ao Rio e pelas minhas visitas a São Paulo, fui conhecendo bem melhor este personagem  que seria tão essencial pela minha vida afora..

Em São Paulo, morava numa casa modesta com uma empregada antiga. Numa das vezes em que fui passar lá uns dias, estando nós dois sozinhos, me segredou, como se alguém pudesse escutá-lo, um fato que até  não me surpreendeu , pois sabia já   da sua generosidade e da força da sua retidão. Mesmo para a época era um homem raro.

 Está vendo estas peças de tecido? Sim, lhe respondi. Tecidos finos, de qualidade, completei. Pois é, quero devolvê-los até amanhã. Devolvê-los? Como assim? Não são seus? Me deram, mas não posso aceitá-los. Um poderoso empresário paulista me presenteou com estas peças. E daí? -indaguei curioso. Dei ganho de causa a ele numa ação movida por muitos e muitos empregados. .Apenas cumpri a lei. Não posso e não devo aceitar presente por ter cumprido a lei. Que vai pensar de mim? Que sou um juiz corrompível   Às vezes , sabe, fazem isto comigo. Imagine que até antes de eu lavrar a sentença! Como pode? – falava indignado .Sou juiz trabalhista. Até carro já me ofereceram. São ações que envolvem muito dinheiro. Fiquei calado, mas admirando aquele homem, simples, modesto, solícito, mas que não deixava de reagir, sem virulência, ou estardalhaço, quando se sentia desrespeitado.Ó tempos, ó tempos que, parece, não voltarem mais.

Tio Antônio, como todos nós, foi envelhecendo. Se aposentou. Anos depois, já aposentado, conseguimos que viesse para o Rio, a fim de que seus sobrinhos cuidassem dele. Afinal, não poderíamos ter outra atitude em relação a um tio que sempre foi um verdadeiro pai para nós. Precisou de cuidados especiais ao final de sua vida. Uma vida de renúncia, uma vida de doação, uma vida de apoio à família, uma vida de dignidade, uma vida consagrada ao bem.

Morreu ao final dos anos oitenta do século passado. Perderam  seus sobrinhos um segundo pai. Nos  sentimos  de novo órfãos. Mas nos deixou uma lição fundamental: o cultivo da dignidade e da generosidade. Eis o  legado de tio Antônio. Legado para não esquecer..