Um bom escritor?

É, gostei do livro, uma boa leitura. Falei, alisando-o, pousado na mesa de um bar. A romancista (Luize Valente) com esta sua obra, que me foi indicada por um livreiro conhecido, que sabe muito do mundo atual dos livros, me conquistou com o seu estilo. Obra que traz três histórias instigantes, sobre relações de personagens com a casa – a da narradora, a alheia e a metafórica. (“Do tempo em que voyeur precisava de binóculos”, eis o título do livro). A casa se apresenta então como o fio condutor das histórias, como abrigo físico e moradia íntima.

Uma amiga atenta, sentada ao meu lado, me indaga logo: você diria que ela é uma boa escritora? Sim, embora tenha sido a primeira obra que li dela. Então, não é precipitada a sua avaliação? Até pode ser, mas a escritora reúne tais qualidades literárias nesta obra, que assumo a minha avaliação, repliquei com segurança. Posso gostar menos de outros romances dela, porém, não espero que tenha escrito obras desabonadoras do talento literário revelado no livro que acabo de ler.

Nanda, a minha amiga, pega o livro, o folheia ao acaso, lê as orelhas, a quarta-capa, um ou outro trecho, e, curiosa, me põe à prova, certamente por ser eu um leitor que ela sabe vir de longe em sua atividade de procurar outros mundos nos livros. Que é afinal um bom escritor? era a questão.

Nanda , parecendo a mim querer mais me derrubar com suas indagações do que movida por curiosidade intelectual, vai logo se adiantando: um bom escritor não comete erros gramaticais, eu sei. Não, não, não é por aí, retruquei. Se a obra for literária, ela tem um intento estético, ou seja, visa especialmente à sensibilidade do leitor. Sentindo certa desconfiança por parte de Nanda do que eu pudesse dizer, adotei conscientemente um tom professoral. Às vezes é preciso. A vida ensina.

Então, continuei, para o autor alcançar seu objetivo artístico, ele pode se valer da linguagem que julgar adequada. Qualquer variedade da língua, da culta fixada pela tradição até qualquer variedade regional ou até a mais popular, com termos chulos, “sintaxes de exceção”… De sorte que um bom escritor não tem de estar preso ou preocupado com possíveis afastamentos do uso culto, e sim com formas que legitimem seu intuito narrativo, valendo-se mesmo de formas não antes lidas em outro texto, mas previsíveis com os recursos que a língua coloca à disposição dos seus falantes. Durante o Modernismo, chegou-se a declarar que os escritores podem criar linguagens sem a obrigação de obedecer ao vernáculo.

Sei. disse a nada boba Nanda. Seria o caso de um Jorge Amado. E de tantos outros autores, acrescentei: um João Antônio, um Dalton Trevisan… E de um Manoel de Barros, que cria como uma linguagem muito sua, só sua, bem inteligível, no entanto, por um leitor sensível e experiente. E bom conhecedor da língua. Daí a expressiva passagem dele, auto-explicativa: “Não gosto das palavras/fatigadas de informar.{…} Porque eu não sou da informática:/eu sou da invencionática”.

Nanda, um bom autor, para mim, enfatizando, é o que se mostra, antes de mais nada, fiel ao seu projeto narrativo, como foi um Manoel de Barros ou, bem diferentemente, um Graciliano Ramos, preso a uma linguagem culta, salpicada de termos regionais, num estilo seco. Mostraram-se estes dois escritores mencionados competentes no seu intento. Dois bons escritores, pois.

Há sim, eu acrescentaria, Nanda, autores que são bons contadores de histórias, criam tramas narrativas que vão prendendo nossa atenção ao longo de toda a obra, mas sem que o seu contar tenha maior valor literário, maior elaboração com a linguagem. Costumam ter tais autores muitos leitores, que vão devorando os livros assim escritos, muito mais voltados para o suspense da narrativa, do que para a linguagem narrativa em si. Não, não, não vou citar nomes, não estou aqui, nesta nossa conversa, para desvalorizar ninguém, certo? Serão eles bons autores? – me indaga a amiga Nanda. Sempre com suas perguntas meio embaraçosas. Não está gravando o que eu digo com este seu celular, não é? – lhe falei brincando. Que isso? riu. Pois para mim são autores com inegável capacidade narrativa, mas de menor talento literário.

Contamos atualmente com muitos escritores de valor em nossa literatura?, me pergunta a amiga. Sinceramente não sei, Nanda. Esta não é minha praia, como dizem por aí. Li um ou outro. Em geral, por indicação do meu livreiro, leitor voraz. Boas indicações, por sinal. “Do tempo em que voyeur precisava de binóculos” foi uma dessas.

Luize Valente, de que nem ouvira falar, Nanda, tem um trabalho muito expressivo com a linguagem. Posso te emprestar o livro, se quiser. Há nesta obra a intenção permanente de uma narrativa rápida, com diálogos ou monólogos a se processarem velozmente. Vale-se então de preferência de frases curtas, denunciadoras de ato de falas ligeiras, mesmo as que denunciam uma observação mais densa. Sem que haja mudança de linha, os personagens dialogam com frases que se sucedem sem pausas, com pouco uso da vírgula, exigindo do leitor uma atenção redobrada. A escritora concretiza assim o seu intento narrativo. Atravessamos as três histórias com curiosidade sempre presente.

Você me fornece a indicação do seu livreiro? me pede Nanda. Estou precisando de alguém assim. Tantas vezes não encontro o livro que gostaria de ler. Nanda, lhe respondi, encontrar um livro, sem que a obra tenha sido muito comentada, nem sempre é fácil. Uma recomendação de um leitor competente, experiente, vale muito. Por enquanto, fica com este da Luize Valente, de que eu estou lhe falando. Que já foi indicação do meu amigo livreiro. Depois, vamos papear sobre o livro, certo?