
Sentado em minha poltrona amada, sopros de sensibilidade, em lembranças idas e vividas, alcançam a minha memória. Sopros que não se afastaram do ser sensível com o passar de muitos anos.
A começar pela incontida emoção de ver meus dois filhos, com apenas um ano de diferença entre eles, logo após seus nascimentos, no colo do inexperiente e temeroso pai. Pude então observar em seus olhinhos voltados para mim que nascia ali a visão do mundo para eles, a descoberta do outro. O despertar da vida fora do aconchego uterino da mãe. Momentos tocantes, que me encantam até hoje. Lembro que cada um entrou em sua nova casa no colo, cuidadosa e feliz, daquela que lhes pôs no mundo , com o intento agora de lhes apresentar a morada da família que se formava. Marcante cena. As nossas retinas muitas das vezes apreendem melhor que as fotos. Olhos adultos e olhos nascituros a se cruzarem curiosos. Pura sensibilidade a dominar aquele encontro.
Outros sopros, acolhidos por mim, carregados de rara sensibilidade, acolheria em minha vida, com a presença dos filhos. O balbucio, a anunciar a fala, o engatinhar, os primeiros passos, o equilíbrio alcançado, a entrada para a escola, os primeiros sustos com os tombos e com o aparecimento das doenças infantis.
Um longo recordar do convívio familiar, com seus percalços inevitáveis sim, ao lado de tantas situações de intenso regozijo, uns e outras a mexerem até hoje com a minha sensibilidade.
Evoco também situações bem outras que tocaram também fundo o meu universo de emoções, protegidas assim da ação perene do tempo, a apagar muito da nossa vida sensível .
Quero logo reportar-me a outro mundo que povoou a minha vida, repleto de eventos que guardei para mim. O universo profissional Eis dois destes eventos. Simplórios, mas de grande repercussão para quem ingressava na carreira do magistério.
No ano seguinte ao da minha formatura como professor, fui lecionar num colégio em que tinha estudado durante toda a minha adolescência. Numa turma do então primeiro ano ginasial, vi-me rodeado de meninos com seus onze anos. Me surpreendeu o desembaraço do jovem professor recém-graduado e a recepção acolhedora por parte da turma. Me mostrava mesmo à vontade ao pisar aquela sala de aula em que, há vários anos, ocupava uma das carteiras. Vivia naquele momento dois tempos distantes. Tentei logo incutir nos meninos a importância do estudo da língua materna, com exemplos que julgava motivadores. Quase ao final da aula, um menino, bem pequerrucho, se dirigindo surpreendentemente a mim, disse bem confiante: quero um dia, professor, escrever bem, ser um escritor. Sorri alegre e, com voz emocionada, lhe respondi: pode contar comigo, para ajudar a você. Não deixe de me procurar, combinado?
Outra situação de início de minha atividade docente, esta de docente universitário, marcou para sempre a minha sensibilidade. Era minha primeira aula na tradicional Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Substituía um acatado mestre, de quem começava a ser assistente. De início , lá no fundo de um amplo salão, com cerca de cem alunos, assistia às aulas de Mattoso Câmara. Assistente é quem, antes de mais nada , assiste às aulas do magister .
Certo dia, o mestre me comunica que não daria a aula da próxima semana. Devia substituí-lo. A turma estranhou minha presença lá na frente, em cima de um tablado. De terno e gravata, seguindo o hábito do eminente lingüista , explanei, com a segurança possível, sobre o objeto da aula. A turma me acompanhava atenta. Uma ou outra indagação ligeira. Finda minha exposição, desejei um bom dia a todos. Eis que, ao sair, uma aluna se aproxima de mim, e me diz: muito boa sua aula, professor. Meus parabéns. Que repercussão teve em mim as palavras daquela aluna. Era tudo o que queria ouvir, era tudo o que precisava ouvir. Agradeci aquelas palavras um tanto secamente, tomado pela emoção. Nem fixei a figura da aluna, se baixa ou alta, loura ou morena. Assim não pude localizá-la na aula seguinte. Passados tantos anos, ficou a magia daquele momento de rara sensibilidade, impulso de enorme valia para a minha carreira no magistério superior.
Mas, como falar da forte presença da sensibilidade em minha vida, sem mencionar os encontros com a arte, mormente com a leitura de textos que, já com maior vivência literária, me embalavam para um mundo bem diverso, o mundo poético, o mundo que nos é apresentado pela maravilhosa atividade criadora que constitui a linguagem verbal.
Em nossa língua, que trajetória da mais pura emoção é ler desde os poemas camonianos e, com a literatura brasileira, partindo de Gonçalves Dias e de Álvares de Azevedo, chegar a Bandeira, Drummond, Cecília e tantos outros. Poemas de variados poetas, de diferentes intentos estéticos, estão aí para momentos em que carecemos de preciosa sensibilidade. Não, os prosadores, romancistas e contistas , não podem ficar de fora de uma seleta literária.Como esquecer um Machado, um Graciliano, uma Clarice e muitos outros?
Outras manifestações artísticas seriam por mim cultuadas. A música, a pintura, sobretudo. Sem a arte, a própria condição humana se vê privada de preciosas manifestações de fina sensibilidade. Tive, não há muito tempo, a oportunidade excepcional de, numa exposição no Rio de Janeiro, me ver frente a frente a um quadro famoso do extraordinário Van Gogh Fiquei estático,atrapalhando até a fila formada. Gostaria de um lugar para me sentar e ali ficar embevecido um bom tempo.
A arte sempre me ajudou a viver, penetrando nos escaninhos mais recônditos da minha alma. Também em manifestações do homem quotidiano a sensibilidade se faz presente, não tem condição cultural, raça, nacionalidade, credo, ideologia… Ela nasce com cada um de nós e se desenvolve de acordo com nossa visão do mundo e com nosso sentir o outro e as circunstâncias.
Receio um mundo avançadíssimo na tecnologia, com seus robôs por ele espalhados, mas um mundo empobrecido na sensibilidade da gente humana, diria mormente a que nos envolve em tantas situações vividas no nosso dia a dia.