Os três companheiros

Esta imagem tem um texto alternativo em branco, o nome da imagem é cropped-carlos-eduardo-uchoa-1-150x150.pngVieram a se conhecer ao ingressarem no antigo ginásio. De início, no meio de tantos alunos no novo colégio, três coleguinhas se sentiam meio isolados.  Durante o recreio, cada um saboreava seu lanche num canto. Alguns colegas se mostravam mais desinibidos e encontravam uma brincadeira com que se divertiam. Maneira também de começarem a se enturmar, a serem conhecidos pelos seus nomes. A peladinha , a distração preferida. Bastava uma bolinha de meia.

  “A vida é um tecido de equívocos”, na voz de um romancista nosso. Pode ser. Porém, podem ocorrer também acasos, coisas simples, que repercutirão de maneira muito favorável por toda a trajetória de uma pessoa, por um atalho que bem merece receber o nome de felicidade. Felipe, Jorge e Leonardo (Leo), por um destes acasos, passaram a ficar lado a lado durante o recreio. Depois de uns poucos dias,  poucos mesmo, começaram a se soltar , logo, logo, a conversar . Mesma idade, seus onze anos, torcedores do Flamengo, gostavam de cinema, meio tímidos, os três.   Passaram a curtir o estarem juntos. Conversavam sobre tudo, ou… quase  tudo.

 Moravam no mesmo bairro, a aprazível Tijuca, a Tijuca dos velhos tempos, dos seus tradicionais cinemas, dos seus conceituados colégios, da então bem cuidada Praça Saens Peña , da já festejada escola de samba do Salgueiro. Um bairro tradicional bem amplo, de classe média, ainda que cercada por morros habitados.

Os três companheiros não moravam em ruas próximas. Na saída do colégio, tomavam todo dia o mesmo bonde, mas dele soltavam em locais distantes. Neste bonde começaram a viajar no estribo, a treinar depois saltar dele em movimento já mais lento. Esta traquinagem, como a de fumar escondido na escola ou em casa, fazia parte daquela fase da vida em que o adolescente quer se sentir adulto.  As traquinagens, porém, podem ter seus dissabores.

Um dia Jorge saltou do estribo, com o veículo em marcha  reduzida , mas se deu mal. Não conseguiu engrenar a corrida ao pisar o asfalto. Foi ao chão com os braços esticado , à espera de que alguém o freasse. Felipe e Leo o levaram a um posto de saúde próximo. Nada de grave. O susto? Maior do que as sequelas do tombo. Jorge nunca mais tentou saltar do bonde andando.As sequelas internas? Só Jorge sabia. Não mais comentou o episódio com os dois companheiros. Nem respondia aos gracejos deles. Os pais  teriam sabido do tombo de Jorge?

Frequente , se sabe , o ser humano não estar satisfeito com a sua faixa etária .  A criança quer ser adolescente; este, ser um adulto, maior de idade, em que nada lhe seria mais proibido; o adulto jovem quer ganhar mais uns anos e experiência; com a aproximação dos 40 ou 50 anos, a preocupação com a velhice aparece- como a vida vai correndo, correndo… Um dia, sentiremos uma sacudidela. Ninguém escapa .Com outros e outros aniversários, o medo da indesejável começa a se insinuar,  para não mais se apagar do espírito humano.Que saudades dos verdes anos.

O tempo estreitava o companherismo  dos três ginasianos . Tinham lá os seus naturais desentendimentos, discussões até acaloradas, mas nada que pudesse afastá-los. Uma cara feia aqui e ali, no entanto, tudo passava rápido. Começaram a ir juntos ao cinema, quando a grana permitia. Chegavam a juntar moedas, de trocos esquecidos, até alcançarem a quantia de um ingresso.

Todas três famílias lutavam com dificuldade, orçamentos apertados. Os pais exerciam atividades modestas. As mães cuidavam da casa, como era habitual na época. Já com certo amadurecimento os três companheiros passaram a pensar mais na vida. Os pais não eram eternos. Bem sabiam da importância do estudo para alcançarem uma condição de vida presumivelmente melhor.

Ao iniciarem o curso científico no mesmo colégio, com enorme sacrifício dos pais, era inevitável a troca de ideias sobre a carreira a seguir. Qual o vestibular a prestar? Afinal, o que cada um deles queria ser na vida? Parentes, conhecidos, vizinhos, todo mundo perguntava. Os pais não perdiam  de vista o futuro dos filhos. Levavam mesmo uma vida muito sacrificada, nem havia como adoecerem, muito menos como fazerem uma viagenzinha. Queriam uma vida melhor para os seus rapazes.

Só ao chegarem à terceira série do científico é que, depois de muita hesitação, fizerem suas escolhas, que muitas vezes não são definitivas. Felipe optou pela Engenharia, Jorge, pela Medicina, e Leo, pelo Direito. Carreiras nobres. Os amigos teriam de se separar. Inevitável. Começou já no próprio colégio, pois havia uma turma para a área médica e outra para os vestibulandos de engenharia Os que fariam vestibular para Direito tinham umas aulas de Latim à parte, com um professor padre. Se encontravam então  apenas no recreio e  na volta para as suas casas. O tempo de idas ao cinema e ao futebol tinha ficado bem restrito. O tempo e a grana.

Por sentirem que a luta pela vida estava por começar mais seriamente , decidiram que ela devia ter  início  numa aplicação maior ao estudo no próprio colégio, pois as famílias não tinham condições  de sustentar o pagamento em um curso preparatório especial. Grana alta. Poucos colegas frequentavam o tal curso. O colégio, particular sim, mas com o alunado de classe média mesmo, com vários estudantes gozando de gratuidade, veio a se saber depois.

Pouco lazer, muito fazer. Raros festejos. Aquele ano seria puxado. Boas intenções, pois, não lhes faltavam. Os três companheiros foram sempre alunos médios nas provas e trabalhos escolares. Nunca foram reprovados. Isso não. O colégio tinha bons professores em algumas disciplinas. Mesmo assim, difícil ser aprovado no vestibular sem frequentar “o cursinho”, como se dizia na época.

Felipe , Jorge e Leo,  como alunos do curso científico, já tinham as suas fãs,  as suas namoradinhas. O erotismo se fazia fortemente presente. Explosão de hormônio. Entre ficar, certos dias, em casa estudando ou ir a um cineminha com o flerte do momento, nenhuma hesitação. Vou estudar na casa de Fulano  ou Sicrano, a desculpa de que se valiam para saírem.Que sessões de cinema!Ao saírem da sala escurinha, o casal adolescente nem sabia a que filme tinham assistido. Quando as luzes da sala se acendiam ,levavam então certo susto. Tratavam de se recompor. O sol lá fora nunca lhes pareceu tão claro.

As conversas entre os companheiros passaram a se concentrar mais nos namoricos. Garotas, uma obsessão. Obsessão muito prazerosa. Pouco falavam  das aulas, do estudo. Felipe então não podia ver uma jovem mais atraente.  Sabe, falava aos companheiros, tenho uma vizinha que me deixa louco. Sei não, mas estou achando que ela está me dando bola. Sorri quando passo por ela, de longe fica me olhando. Já falou com ela? perguntaram   os dois outros. Ainda não. Ela está sempre com uma pessoa da família. Chego a perder o sono, pensando nela, tal a minha excitação. Passando por uma jovem que julgasse gostosa, como ele dizia , se esquecia até do que estava falando.Felipe, bem alto, ostentava um porte avantajado, atraindo os olhares das adolescentes. Ficava todo vaidoso. Não se mostrava, no entanto, um falante interessante, de conversas variadas. Por isso, talvez, seus romances durassem pouco.

Já Jorge, um filho muito achegado aos pais, deixando transparecer suas preocupações em relação a eles.  Um tanto arredio nas festas e bastante discreto nos namoricos.  Convivia bem com os dois companheiros, mais com Leo. Sensibilidades próximas. Falava pesaroso dos jovens, colegas de  rua,moradores de casas de cômodos, que não tinham acesso à escola, revelando precocemente um olhar atento para as desigualdades sociais. Talvez o mais maduro dos três.

 Leo carregava certa frustração com a sua baixa estatura. Se pretendesse namorar uma garota, mas se ela fosse um pouco mais alta que ele, desistia logo. Muito ligado à religião. Não era de perder a missa dominical. Os palavrões, raros em sua fala . O mais tímido dos três. Transmitia mesmo certo estado depressivo.

Com suas diferenças de temperamento, de atitudes ante a vida, os três companheiros mantinham uma amizade sólida, o que lhes assegurava confiança nesse relacionamento, a ponto de se sentirem seguros de se abrirem com os amigos em situações mais embaraçosas. Sabiam valorizar o grupinho que constituíram.

Aquele ano do vestibular corria célere, era preciso meter a cara nos livros. Nada fácil.  Os pais nem tinham tempo para observarem a mudança no dia a dia dos filhos, sempre prontos a darem uma resposta para justificarem suas saídas. Namorar é preciso, passou a ser o lema deles, sobretudo de Felipe.

Um outro assunto passou a merecer a preocupação dos jovens. Estudavam num colégio católico. Aula de religião todo dia. Confissão aos sábados. Não obrigatória. Mas quem não fosse, pensavam , o professor padre ia pensar que aquele aluno estava carregado de pecados mortais.  A palavra pecado se tornou  corriqueira na fala dos  três adolescentes , sobretudo na cabeça deles.Puxa, exclamou certa vez Felipe,tudo é pecado: pensamento,palavra, obra e omissão, reza o catecismo. Como viver assim?

Como conciliar a religião com práticas pecaminosas, segundo os mandamentos sagrados? Conciliação impossível, chegavam à conclusão. Os três companheiros falavam muito sobre isto. Um problemão para eles. Não vou me confessar mais, exclamou certo dia exaltado Felipe, sob os olhares espantados dos outros dois. Os pais, católicos não praticantes, longe estavam de perceber o drama dos filhos. Quanta gente deve ter este conflito, refletiu Leo. A religião não deixava de ter um valor apreciável na vida dos três, mas talvez na vida de Leo. O sentimento de culpa parecia pesar mais na consciência dele. Talvez por isso aquele olhar meio tristonho que o acompanhava.

Num ano de obrigações maiores na vida dos três, e de conflitos existenciais  , o vestibular se tornou uma barreira intransponível para os três. As provas, nada fáceis, a concorrência, forte. Os companheiros sentiram a não aprovação. Que fariam no outro ano? Um pesadelo bateu sobre eles. Ficaram meio depressivos, sem alegrias, como que derrotados. Que decepção para os pais! Férias, qual nada. Pouco saíam, pouco se encontravam. Uns telefonemas esporádicos, no máximo.

Numa conversa  com um colega, Jorge soube que no próprio bairro tinham aberto um curso de preparação ao vestibular. Certamente não poderia ser do mesmo nível que os já tradicionais  localizados no Centro da cidade, com um corpo docente muito experiente.

Felipe e Jorge foram conferir. Leo não tinha como lá se matricular. O vestibular para Direito se assentava principalmente em Português e Latim. O curso não oferecia tais disciplinas. Os três sentiram muito. Leo ficaria de  fora. A mensalidade  mais acessível do que a dos cursos de nome firmado. Falaram com os pais, ainda decepcionados com a não aprovação deles. Que remédio, comentavam  de maneira quase igual. Feitas as matrículas, os dois companheiros passaram a se ver de novo no dia a dia,  sem a presença de Leo.Pareciam dispostos a se aplicarem no estudo, sem, contudo,deixarem de lado os namoricos. Isto não.  E não havia mais a confissão aos sábados. Se sentiam mais livres para a vida.

O curso se mostrava razoável. A direção se preocupava em corresponder aos alunos de sua primeira turma. Havia apostilas com exercícios, professores dedicados. Um bom ambiente entre os alunos, que eram submetidos a avaliações com regularidade.

Até que o ano parecia correr mais favorável aos dois companheiros. Felipe tinha um amigo que cursava o terceiro ano de Engenharia. Ele se prontificou em dar-lhe umas aulas de reforço  de Matemática e de Física. Já Leo recorreu a um vizinho, um senhor de idade, formado em Letras, para umas aulas de  Latim , que lhe seriam de grande valia. Os pais não deixavam de ter as suas preocupações As expectativas aumentaram em relação ao futuro dos filhos.

A ausência de Leo se fazia sempre presente nos dois companheiros. Faltava um naquele grupinho. Que saudade dele, da vida que juntos levavam,  das emoções que sentiram em certos momentos. Leo, no entanto, se mostrava feliz, pois estava de namoro com uma jovem que tinha conhecido na sua rua.  Descobria o amor.  A moça, um pouquinho mais alta que ele. Felipe e Jorge namoriscavam colegas do curso.

O ano se encerraria muito feliz para os três companheiros. Enfim, aprovados em seus vestibulares. Emoção incontida para os pais. Filhos universitários!Que orgulho!E sem terem de pagar mais mensalidade. Sim, mas a mesada seria mantida.

Os novos universitários, com o começo das aulas, passaram a se encontrar menos, mesmo pelo telefone. Novos colegas, um ambiente escolar completamente diferente. Passaram a se sentir adultos, numa atmosfera a que precisavam se adaptar. Certo susto de início ao terem de acompanhar algumas matérias. Jorge é o que mais se ressentia na medicina. Mas estava gostando do curso.

O tempo corria, e os três companheiros foram se afastando. Raros telefonemas. Outro momento da vida deles. Novas amizades, novos caminhos, novas perspectivas. A necessidade de ganharem algum dinheiro com uma ocupação, ainda que provisória. Adaptados aos cursos, Felipe, Jorge e Leo se mostravam aplicados.

Quase logo depois de se formarem, se casaram, constituindo assim suas famílias. Todos três tiveram filhos. A vida de cada um seguia assim sua trajetória. Ela é a trilha. Felipe foi transferido para São Paulo, Jorge passou a clinicar em Juiz de Fora, e Leo permaneceu no Rio. Nada sabiam dos outros dois. Esporadicamente se perguntavam: Fulano e Sicrano?Onde estarão? Vivos ainda? Sim, com certeza, respondiam de imediato, sem admitir a outra hipótese. Indagações soltas no dia a dia de luta de cada um.

Nenhum contato com colegas do tempo do ginásio e do científico, ainda que se lembrassem às vezes de um ou outro. Porém, a vida nos reserva suas surpresas, boas e más. Em vários momentos,  a monotonia , formada de coisas simples e   permanentes , costuma  encobrir  a nossa felicidade. A sede pelo novo, pelo não vivido, nos conduz a desconhecer nosso próprio bem.  Perdemo-nos então num mundo de aparências enganosas. A solidão faz de nós a sua presa. Os três companheiros se entregavam algumas vezes a elucubrações filosóficas, em tentativas de poder responder a indagação essencial :  qual o sentido da vida?

Uma comissão formada por alguns colegas do tempo do ginásio e do científico teve a idéia, e a implementou  ,  de a turma comemorar os 50 anos de formatura.Muito trabalho teve  a comissão de localizar os formandos daquele afastado ano.Haveria um churrasco no Rio,  no próprio  colégio.Colegas vários começaram a ajudar a comissão formada. Mesmo os residentes fora da cidade carioca eram convidados. Leo, que tinha ficado no Rio, torceu muito para o evento ser bem sucedido. E, naturalmente , com a presença dos dois antigos companheiros.

Durante o evento, muitos os ex-alunos que confessavam terem passado dias de enorme expectativa com a aproximação da data do evento. Quem iria? Como estaria cada um? Quais já tinham falecido? Leo era todo ansiedade  pelo reencontro com a turma, particularmente com Felipe e Jorge. A comissão teve a  ideia  de que cada um usasse na lapela um crachá com o seu nome. Sim, como garantir que, após 50 anos, Jorge, por exemplo, seria reconhecido como aquele Jorge do tempo do colégio? Na noite anterior, veio a se saber depois, o sono não foi nada tranquilo  para a maioria.

Leo foi um dos primeiros a chegar. Ao passar pelo portão do colégio,  ficou estático. O lindo e extenso jardim continuava igual. Canteiros extremamente cuidados.  Parecia que nada tinha mudado. Ao passar depois pela porta de entrada, estarreceu de vez. O largo e comprido prédio, que abrigava dois andares, com as salas de aula enfileirada , salas que abrigavam as séries do antigo ginásio, estava como novo.O científico  já se situava no fundo do colégio, onde –eis a novidade- se destacava agora um campo de futebol bem  bonzinho.O churrasco se realizaria num terreno coberto  perto do campo.Os padres  conservaram quase que integralmente as antigas instalações e foram comprando terrenos  e mais terrenos vizinhos, ampliando assim os espaços do educandário.

Para o primeiro colega com que se encontrou, Leo foi logo dizendo, após um olhar discretíssimo para o crachá dele: sou o Leo, se lembra de mim, Manuel? E assim todos os ex-alunos procediam. Nossa, comentava Leo consigo mesmo, como Rodrigo engordou! O Carlos bem calvo! José, bem envelhecidinho! Mas estão todos vivos! É o que mais importava. E nada de Felipe e Jorge aparecerem. O coração de Leo acelerou.

Já  nervoso , Leo pareceu vislumbrar a Felipe. Com a aproximação e lendo os crachás, eis que o encontro dos dois se  deu. Se abraçaram longamente. Emocionadíssimos. Só carinho entre os dois. Você ficou muito bem com estes cabelos grisalhos, disse Leo para o companheiro. Olhar amigo, respondeu Felipe.  E veja minha barriga. Puxava ele de uma perna.   Depois dos 50, e mais ainda dos 60, os joelhos não perdoam, comentou quando viu Leo olhar para  o seu caminhar. Você é que não mudou nada, falou Felipe.  Pura amizade. Leo estava caidinho, e também mancava um pouco. De repente, alguém se aproxima dos dois. É o Jorge, diz Felipe. Os três se abraçaram, como a matarem as saudades acumuladas de tantos anos. Formaram  um pequeno círculo, fechado com os braços de cada um nos ombros dos dois outros. Chegavam a chamar a atenção da turma, num misto de admiração e inveja.

Quanta história cada um tinha a narrar. A faculdade, o trabalho, o casamento, os filhos, as finanças, e tudo o mais. Desculpas por não  contactarem com os outros dois . Lembranças vivas do companherismo   de outro tempo. A emoção tomava por vezes conta deles. Disfarçavam o quanto podiam para não chamarem a atenção. Conseguiram uma mesa pequena no espaço da festa. Assim poderiam ficar mais à vontade, embora fossem muito interrompidos em suas conversas para abraçarem antigos colegas. O chope facilitava a fala mais espontânea deles . Abriam o seu coração.

 Felipe relata que acertou cursar engenharia. Considerava-se bem sucedido. Muito cedo entrou para uma boa empresa e nela permaneceu até se aposentar. No meio do caminho, foi transferido para São Paulo. Tinha suas promoções. Dei muita sorte, confessou. Qual nada, protestou  Jorge. Ninguém permanece tanto tempo na iniciativa privada em função altamente técnica se não for mesmo competente, ponderou Jorge. Ah, isso é verdade, acrescentou Leo. Aposentado, voltei para o Rio, minha terra. Quantas vezes se casou? brincou  Leo. Três, respondeu Felipe. Matou duas? provocou Jorge. Não, respondeu rindo Felipe. Duas separações. Até que foram poucas, prosseguiu Jorge em sua fala galhofeira. Você criou fama quando jovem. Mulher era contigo. Na rua, ficava muito mais atento às garotas com que cruzávamos do que com nossos bate-papos. Felipe achou graça. Não. Sosseguei depois. Sabem, a idade, a família, os aborrecimentos nas duas outras uniões, ter filhos de casamentos distintos, enteados, pensões a serem pagas…Em certas situações foi uma barra . Mesmo com muita despesa, consegui fazer uma poupança. Moro num apartamento que é meu. Mas e vocês dois? Falem de vocês. Morro de curiosidade.

Fala ,  Jorge. Este , meio tímido, tinha mais dificuldade em sua narrativa. Indeciso, voz um tanto gaguejante, começou a alinhavar o que tinha a dizer. Na medicina , optei pela ortopedia.Fui cirurgião quase até o final. Perto da minha aposentadoria , me restringi à clínica. As mãos já não me respondiam tão bem… Fui na vida o que queria ser. Fundamental, asseverou Leo. Me casei cedo, tive dois filhos. Com parentes em Juiz de fora, acabei me mudando para lá. Vida mais calma. Formei um bom grupo de clientes, além de trabalhar em um hospital. Há pouco mais de ano, voltei para a minha cidade. Ainda clinico um pouco. Oba,  oba, gritaram uníssono os dois companheiros. Vou tratar com você do meu joelho, se adiantou Felipe .Eu idem,  asseverou Leo.Eu  trato  também dos meus joelhos, brincou Jorge. Sabem? Tenho uma vida equilibrada, que dá para ajudar um pouco os filhos na educação dos netos. A vida está pesada para todos, não é mesmo?

Agora fala você, Leo, pediu Jorge. Me formei mesmo em Direito, chegando a constituir uma boa banca de clientes.Não tentei a magistratura. Esta carreira de honras é muito complicada, companheiros. Não gosto de holofotes. Nem causas criminais. Só cíveis. Me mantenho católico. Mas nada de confissão, falou sorrindo .Fiquei num único casamento.Permaneci sempre no Rio. Às vezes, passo diante do nosso colégio. Fico tocado. Vontade de nele entrar. Mas sozinho?Não tive coragem. Hoje, é um dia mesmo muito especial: revejo o colégio, os meus ex-colegas e  sobretudo a vocês dois , nunca esquecidos.

Viviam uma data muito especial. Data de lembranças, data de reencontros, data de promessas, data que tinha, na verdade , um enorme valor nas trajetórias  de jovens que um dia se viram irmanados e  que conseguiam de novo se encontrar após longos cinquenta anos.E firmaram a promessa de estarem juntos periodicamente, até, até…

Sim, os três companheiros fizeram  juras de amizade renovada. Todo mês se encontrariam para almoçar. O esforço para não faltarem aos encontros. Após alguns meses, sempre trocando mensagens, acertaram afinal um restaurante, na sempre sedutora Copacabana, para porem a conversa em dia, a vida em dia. Acertado o horário, eis que se dá o primeiro encontro dos três companheiros. Todos três pontualíssimos .Tinham já mais de seus  setenta anos.

Algum formalismo ainda entre eles no início. Tinham perdido aquela espontaneidade. Era o recomeço de uma relação. Partiram logo para as tulipas do chope, bebida ideal para a situação que vivenciavam. O desejo de falar, de narrar momentos de suas vidas era intenso. Chegavam a falar ao mesmo tempo. A camaradagem reaparecia. Curiosidade bem evidente nos três. Certas oscilações: pergunto ou não? Mas com a continuidade dos almoços o formalismo desapareceu de todo. Apareceram as gozações. O retorno do antigo tempo. A volta dos três jovens. Uns chopes a mais.  Nada mal..

Durante meses, sempre aos sábados, naquele mesmo horário, os três companheiros se reuniam no mesmo restaurante, naquela mesma mesa. O garçom se tornara amigo deles. Como bom cearense gostava de prosear com os três. Por meses, o encontro não falhou nenhuma vez.

O tempo, o deus Cronos ,não dorme um minuto. Foi passando. O encontro completou um ano, dois anos, três anos… O envelhecimento dos companheiros dava seus sinais visíveis. Ninguém escapa desse desgaste  nesta maratona existencial. Felipe começou com os primeiros sintomas de confusão mental. Porém, não deixava de ir aos encontros. Conversava menos. Não podia mais fazer suas viagens com a esposa. Passou a ter gastos altos com a doença. A segurança, contudo, de um bom plano de saúde. Jorge tinha sofrido um acidente de bicicleta, que, já com idade avançada, manobrava ainda com garbo. Pelo acidente, teve uma das pernas violentamente atingida, andando com um aparelho especial. Logo ele um ortopedista. O seu caminhar era bem dificultoso. Só podia andar de táxi. Mesmo para subir e descer dele não era fácil. Leo perdera muito da audição, prótese na bacia, o que também afetava suas andanças.

O simpático garçom admirava os três companheiros. Por ele deixaria o trabalho e se sentaria à mesa com os três, sorvendo o seu chopinho. Afinal, com idade ele também estava… e era filho de Deus.

 A velhice tinha avançado bem! Precisamos ter coragem, repetia o médico Jorge. As limitações vão se ampliando. Envelhecer é uma aprendizagem das perdas. A partir dos 80 anos , então , não há joelho que esteja sem problema.O ser humano quis ser bípide… As artroses se distribuem pelo corpo, apesar das prevenções tomadas. E olhando para os dois companheiros: mas estamos aqui, com este apetitoso prato de massa à nossa frente e esta sedutora chulipa.  Saudemos , apesar de tudo,  a nossa resistência pela vida.O bater das tulipas.

A dificuldade de caminhar avançava nos três. Jorge era quem tinha mais problemas. Mesmo para uma distância bem pequena, tomava um táxi. Andava se segurando às vezes na parede, nas grades, mesmo com uma muleta. Era determinado, no entanto. Tinha ficado viúvo. Se sentia, naturalmente, muito sozinho. Felipe e Leo capengavam. Uma luta contra os buracos e desníveis das calçadas da abandonada cidade.  Cada encontro dos três continuava a ser uma festa . Com que alegria se festejavam.

Ao saírem do restaurante, passaram a se apoiar mutuamente , com maior cuidado com Jorge Colocavam a ele num táxi e seguiam em frente. A velhice vai acabando com certos constrangimentos. Que os outros julgassem como quisessem, vendo os três cambaleantes. Não estavam nem aí. Como médico, Jorge explicava aos companheiros certas mazelas que aparecia, já entrantes na alta velhice. Reclamavam muito dos inúmeros exames a que tinham de se submeter.Haja ressonâncias, tomografias, ultra-sonografias…Exames de sangue então.

Certo sábado muito  quente , os três companheiros, enlaçados, com talvez um  ou dois chopes a mais, iam ziguezagueando  pela rua, sob o olhar curioso de alguns passantes. Felizes da vida, ainda que mal se sustassem em pé. De repente, Leo, rindo alto, surpreende: cantemos, cantemos,companheiros. E começa, com voz pouco audível, a lembrar Gonzaguinha, com os outros dois repetindo com dificuldade os versos que escutavam: “Para não ter medo que este tempo vai passar/Não se desespere não, nem pára de sonhar.” Transeuntes paravam para ver  aquela cena.Comovidíssimos.

Foi o último encontro dos três companheiros