Em quarentena

Fica em casa . Não pode sair. Recolhimento absoluto. Nada de beijinhos e abraços Não receba ninguém. Nem parente. Se tiver mais de 60 anos, cuidados redobrados. Perigo!  Lavar as mãos com sabão com pequenos intervalos. Álcool em maçanetas, torneiras, chaves, telefones, superfícies várias… Distância de dois metros de outra pessoa. Por quanto tempo? Indeterminado. Talvez três,  quatro meses…Chegava ao  mundo, ao Brasil, ao Rio,  o potentíssimo e desconhecido Coronavírus , a querer derrubar toda gente, parece que com especial preferência pelos mais  velhinhos, quanto mais velhinhos melhor para  saciar o terrível sanguinário.

Início do isolamento domiciliar .  Nenhuma fugidinha. Que fazer? Como se ocupar? De enlouquecer. De início, TV direto para acompanhar as noticias. Quantos suspeitos? Quantos contaminados? Quantas mortes? Certa torcida para os números não aumentarem. Não há como torcer por outra  coisa. Pelo futebol sobretudo. A TV começa a me irritar, a me sentir  mais ameaçado.

 A partir do terceiro dia, não dava mais. Nada de ócio criativo Vai se perdendo o ânimo, aparece o desânimo, a tensão, esta sempre atenta! E agora, Carlos?

 Quando em casa ,passo a maior parte do meu tempo no meu escritório.Claro que faço minhas incursões  pela casa, com papinhos sobre fatos diversos. De repente, me flagro re-visitando meu escritório , que ocupo há tantos e tantos anos.

Em pé, percorro com a vista todo ele. De boas medidas . Prédio  bem antigo.Não é mesmo acolhedor? Tomado por estantes com muitos livros, mesmo assim há espaço para eu por ele andar. Não muito. Começo a olhar para as fileiras de livros. Alguns passos e eis-me  bem pertinho de alguns. Romances. Lidos, relidos alguns, não lidos muitos. Bom momento para ler romances, e contos, e poesias, e crônicas, e biografias. Estas , sempre me despertaram interesse. Ah, o mundo dos livros. Mundo mágico, sedutor. Nossas trocas de olhares. Os de Linguística  e de Língua Portuguesa ocupam o espaço maior das estantes.Uns, bem familiares, geralmente muito anotados, outros, é verdade,ainda! fechadinhos. Um diálogo permanente com os livros, razão primeira de minha longa permanência no escritório.

Mas o que seria dos livros e de mim, nesta relação antiga e ainda atual, sem o aparelho de ar condicionado nos tempos de aquecimento global e residencial? Minha escravinha tão antiga, espaçosa, comumente abagunçada com livros, papéis de toda sorte, pastas…e o computador. Ao lado , a impressora Com este brigo muito. Desentendimentos frequentes.É verdade, há, contudo,  saldo nesta relação. Gosto de digitar nele. Recebo postagens que me emocionam , que me fazem rir. Algumas são muito repetitivas. Há até as raivosas,  as grosseiras, as debochadas…Afinal, é o ser humano por trás delas todas.

Se me canso com os meus afazeres, prazeres muitas vezes ah, tem uma gostosa poltrana , reclinante , em que chego a dormitar muitas vezes. Leio também sentado nela. Delícia das delícias – quando estou gostando da leitura.Ela bem que carece de uma forração nova.Porém, não contar com ela alguns dias, nem pensar.Talvez seja quem melhor me conheça no escritório , meus estados de espírito.

Ainda nesta minha re-visita ao escritório, bato a vista no telefone, bem ao meu alcance, um lavabo, muito útil, ainda mais agora  em que devo lavar bem as mãos a curtos intervalos. É tempo de preguiça.

Um olhar especial para os dois quadros que, lado a lado, me encantam até hoje, passados uns bons anos. Um, em várias cores, exibindo a agitação de uma cidade e sua arquitetura, com estilos vários. O outro, a figura de um homem, de óculos, recostado, lendo um livro. Este quadro, a traduzir paz, silêncio, concentração, se opõe assim ao seu vizinho, a confusão de um centro urbanístico. Um, escuro, o outro, luzes da cidade.

No fundo de uma prateleira da estante, uma peça curiosa, que adquiri, por preço baratinho,ao acaso,  numa feira de artesanato em Ipanema: um pedaço de tronco de árvore, já um tanto desgastado, com o nome, em letras maiúsculas, U C H O A. Acima do nome o número 119. O que foi 119? Incrível este achado, no meio de tantos quadros na  feira de Ipanema. Como fui bater com os olhos nessa peça?Que valor teria para quem não carregasse este nome?

Pude  assim fazer uma pequena viagem em torno de mim mesmo.Não fui a Paris, espelhada parece num dos quadros, nem mesmo dei  sequer uma volta pelo quarteirão. Mas na minha quarentena, não deixei de fazer um tour, com o qual passei a revalorizar  meu cantinho de estudo e lazer. Não, ao tédio da quarentena.