Numa pequena roda de amigos aposentados, cada um mostrava o seu interesse de saber como os companheiros estavam levando a vida. Todos já haviam evidentemente alcançado a maior idade, aquela, sabemos, que chega, quando chega, nos outonos das trajetórias humanas.
De repente, um dos amigos, o Leo, virado para mim, me indaga: você manteve o hábito da ler? A curiosidade do companheiro me deixou, sei lá, constrangido. Se tenho atualmente lido com a mesma frequência dos tempos “do ler é preciso,” do “estudar é preciso”? Momentos muito diversos. Os livros cedo começaram a se enfileirar nas modestas estantes do meu escritório. Um bom número, sim, um bom número deles, com o crescimento da já então biblioteca, jamais aberto. Passei, cedo, a comprar livros que um dia, quem sabe, poderia precisar para ler ou consultar. Um dia! Que nunca chegou para muitos deles. Ostentação de um jovem professor: adorava ouvir os comentários de alguém que chegasse às suas estantes. O elogio àquele rapaz desejoso de formar uma já respeitável biblioteca com obras muito divulgadas pela crítica em geral.
Livros de uma variedade bem expressiva. Os de Linguística, naturalmente, minha paixão de pesquisa e magistério, em primeiro plano. Obras de Literatura, de ficção, de poemas e de crítica, obras de História… Sim, os dicionários, geralmente volumosos ou em vários tomos. E muitos outros livros com interesses diversos.
Havia sempre, pairava no ar, contei direcionado ao Leo, a indagação sobre o dinheiro gasto pelo jovem professor. Os dois donos da livraria, O Carlos e o Alberto, gente boa, auxiliavam os mais assíduos na livraria, abrindo-lhes uma conta a ser paga aos poucos. Nada de extravagâncias, porém, controlavam com rigor as compras e os pagamentos. Meu pai, amante da cultura, especialmente das letras, não é que entrou no radar do Alberto da livraria ao perceber o esforço do pai de um jovem estudante. E lá ia o pai generoso levando um livro do Mattoso Câmara para o filho, depois dos conselhos dos livreiros. Muita generosidade sempre da parte dele, já avançado na idade.
Mas, companheiro Leo, muitos e muitos anos depois, você me pergunta, já após a aposentadoria, do meu dia a dia atual. Se continuo a ler com assiduidade. Na verdade, o hábito de leitura não é mais o mesmo, não por falta de tempo. Preguiça mesmo, ou melhor, falta de um interesse maior, acho eu. A libido livresca não era mais a mesma. Passaria a ler, selecionando nas minhas estantes obras não lidas, mas que sempre me despertaram curiosidade,de vários campos de estudo, para uma leitura calma e proveitosa. Nada de seguir algum critério na escolha das obras: época, gênero textual, escritores mais afamados… Mas sim e apenas o que meu desejo ou curiosidade reclamava. Minhas leituras passavam a atender estes chamados. Quer saber alguns? Uns poucos, evidentemente.
A primeira obra escolhida, me lembro bem, apertadinha na estante, quase não se vendo a sua lombada, foi Capitães da Areia, de Jorge Amado. Desde muito jovem, queria ler este livro do baiano tão divulgado. Não era um leitor dele. Lia mais na época livros, artigos e recensões da ainda jovem ciência linguística entre nós, com os ismos da época. A literatura, a não ser vez ou outra, ia ficando, nunca esquecida, mas sem um tempo maior para ela.
Depois do livro do Amado, que me agradou muito – sua narrativa viva, a recordação dos usos e costumes da velha Bahia, personagens moldados esplendidamente , várias obras caíram-me às mãos, tempo que costuma correr não afobado.Lembro-me por ora da muito citada biografia de Lúcia Miguel Pereira “Machado de Assis” (estudo crítico e biográfico), o mais recente(2019) “Clarice Lispector entrevista” (83 entrevistados), mais um ou outro de que não estou me lembrando no momento: ”A crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso e “Lições do velho professor”, de Rubem Alves. Veja a diversidade das escolhas
O mais importante pela pergunta que me fez é saber que continuo lendo sim, bem mais devagar e com escolhas quase aleatórias. Tantos já disseram e é verdade: a leitura nos faz companhia, e não deixaria de fazer para os aposentados, sobretudo para os que a cultivaram durante a vida. Sabe lá o que é ter a companhia de um narrador chamado Machado de Assis ou de um poeta conhecido como Bandeira? Um leitor já velho e cansado, mas leitor ainda, meu amigo Leo.
Bravo!!! Bravíssimo !!!
É sempre bom ver essa paixão pela leitura seguir firme, mesmo que em um ritmo mais tranquilo. A lista é variada e mostra um gosto literário refinado, transitando entre a crítica, a ficção e o ensaio, o que só reforça o quanto a leitura pode ser uma companhia rica e inesgotável. Machado, Clarice, Rubem Alves… são vozes que nunca envelhecem, e é bonito ver que um “leitor já velho e cansado” continua sendo, acima de tudo, um leitor. Que essa boa companhia nunca falte!
Belo texto. Parabéns!