Não são poucos os colegas e ex-alunos que me indagam como vejo hoje o meu curso de licenciatura e de bacharelato em Letras, ao se findarem os anos 50 do século passado. Que então se estudava? Que visão crítica do ensino praticado a pouco mais de sessenta anos guardo atualmente dele?
No final dos anos 50, completei meu curso de licenciatura e de bacharelato em Letras Clássicas da já então tradicional Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Criada em 1939, no correr dos anos 60, passaria a integrar a Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), desdobrada em diversas faculdades: Letras, Educação, Filosofia…
Os cursos da Faculdade Nacional de Filosofia se concentravam na antiga Casa de Itália, num prédio de oito andares , no Centro da cidade do Rio de Janeiro, na Avenida Antônio Carlos.
A Casa de Itália, após mais de uma década do término da Segunda Guerra Mundial (anos 60), voltaria a pertencer ao governo italiano. Cada nova faculdade, ou instituto, teve um destino. A Faculdade de Letras levou vários anos para, enfim, se fixar, com diversas outras, no campus do Fundão, situado na Ilha do Governador. Passou a ser neste campus a sede da Reitoria da UFRJ.
A Faculdade Nacional de Filosofia foi, na verdade, uma pequena grande universidade. Nela conviveram notáveis mestres, em todas as áreas dos cursos que abrigava: Darcy Ribeiro. Anísio Teixeira, Maria Yedda Linhares, Alceu Amoroso Lima, Mattoso Câmara, Ernesto Faria, Roberto Alvim Correa, Serafim da Silva Neto, Gladstone Chaves de Melo, Cleonice Berardinelli , Aíla de
Oliveira Gomes e muitos outros.
O Curso de Letras tinha, no prédio da Casa de Itália, três currículos: o de Letras Neolatinas, o de Letras Clássicas e o de Anglo-Germânicas. As aulas de algumas disciplinas eram conjuntas para os três currículos, como as de Literatura Brasileira e de Literatura Portuguesa. O número de alunos (10, em média, por série) para Letras Clássicas era então bem menor do que passou a abrigar a partir da década de 60.
O currículo de Letras Clássicas da época em que estudei era constituído pelas seguintes disciplinas: Língua Portuguesa, Língua e Literatura Latina, Língua e Literatura Grega, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, Linguística, Filologia Românica, Civilização Greco-Romana e as disciplinas pedagógicas, com destaque para a Prática de Ensino no Colégio de Aplicação da universidade, educandário de reconhecido nível pedagógico, que veio a se fixar no bairro Jardim Botânico, na zona sul da cidade. Não se tinha flexibilidade curricular. Todas as disciplinas eram obrigatórias. Não se falava ainda em crédito. O regime era anual.
A disciplina Língua Portuguesa distribuía as aulas pelos quatro anos do Curso. Ao final do primeiro (em 56), o professor Celso Cunha concorreria e ganharia a Cátedra da disciplina , substituindo a Sousa da Silveira, de quem não cheguei a ser aluno. Uma revisão da Gramática Normativa e da então chamada Gramática Histórica dominou o curso. Algumas aulas sobre textos de um escritor brasileiro e outras sobre Estilística se fizeram presentes. A linguística estrutural, então em voga na Europa e na América do Norte, não foi cogitada, nem mesmo a Fonologia. As Lições de Português, de Sousa da Silveira, e a Gramática Histórica, de Ismael de Lima Coutinho, foram, podemos dizer, os compêndios do curso de Língua Portuguesa ao longo dos quatro anos, com citações frequentes a Said Ali e a Mário Barreto sobretudo , à tradição dos clássicos, pois.Os filólogos portugueses Leite de Vasconcelos, Carolina Michaelis e Ephifanio Dias também se faziam muito mencionados com suas obras historicistas. Raras, raras mesmo incursões sobre o português do Brasil. A disciplina mantinha-se assim numa linha bem tradicional, sem preocupações geo e sociolinguísticas.
Quatro anos também de Língua e Literatura Latina, com a orientação do então catedrático, Professor Ernesto Faria. A Fonética, a Morfologia e a Sintaxe se constituíram objeto de estudo em cada uma das três primeiras séries, tendo como obras básicas de estudo a Fonética Histórica do Latim e o Curso Superior de Latim, do professor Ernesto Faria. No primeiro ano, as aulas de Fonética enfatizavam o testemunho de gramáticos latinos, para fundamentar a chamada pronúncia reconstituída, adotada pelo professor Faria , certamente o seu maior divulgador no Brasil. A bibliografia basicamente francesa: Marouzeau, Ernout, Meillet ,os principais.Tinha-se também sempre, durante todo o curso, uma aula semanal com a leitura de textos de autores do período clássico. Duas aulas semanais, nos dois primeiros anos, eram dedicadas à Literatura Latina, com a leitura pelo professor de pequenos trechos traduzidos dos autores focalizados. No último ano, tínhamos um curso de Filologia Clássica.
Como licenciandos , frequentávamos , por três dias semanais, no último ano, o Colégio de Aplicação. Lá passávamos o primeiro semestre, observando aulas de Língua Portuguesa e de Língua Latina ministradas por professores do colégio. No semestre seguinte, tínhamos a responsabilidade de algumas aulas, de 10 a 12, com planos entregues antes ao professor regente da turma, com temas e horários previamente determinados. Observações depois nos eram transmitidas, numa avaliação de cada aula ministrada.
As disciplinas Literatura Brasileira e Literatura Portuguesa apresentavam programação bem diferente. A Literatura Brasileira nos era ministrada por dois professores, com três aulas semanais, no terceiro ano.O professor catedrático Alceu Amoroso Lima (Tristão de Atayde , o seu conhecido pseudônimo) se dedicava à prosa e sua assistente, Maria José Negrão, à poesia.As aulas de Alceu Amoroso Lima, na verdade palestras, constituíam uma visão da história da nossa literatura.As da sua assistente tendiam para a leitura de poemas dos mais diversos autores, de todos movimentos estéticos. Nenhuma presença de teoria literária já em voga, como o estruturalismo. Ressalte-se que a disciplina Teoria Literária ainda não constava do currículo de Letras da Faculdade Nacional de Filosofia. Só a partir de 1963 passaria a fazer parte obrigatória dele, como o de todos os cursos de Letras do país.
A Literatura Portuguesa tinha como catedrático o Professor Thiers Martins Moreira. Eram também três aulas semanais, no correr da segunda série. Recebemos, na programação da disciplina, um curso especial sobre a obra de Gil Vicente, ministrado pela Professora Cleonice Berardinelli. Lembro-me bem de que, no ano em que frequentei a Cadeira de Literatura Portuguesa, foi promovido, entre os alunos, um concurso sobre a obra de Miguel Torga. A poesia de Fernando Pessoa, como a de outros poetas modernos, mereceu um destaque especial no curso. Também aqui os alunos em geral se ressentiam da presença da disciplina Teoria Literária, poucos anos depois introduzida, enfim, no currículo de Letras.
De três anos era a duração do ensino de Língua e Literatura Grega. Aulas mais centradas na gramática do Grego, que nos possibilitaram no fim do curso começar a traduzir pequenos textos de autores clássicos. As aulas de Literatura Grega representaram um apanhado sucinto de algumas obras desta literatura .O catedrático da disciplina era um frade franciscano, frei Berge, que prestava seu conhecimento da língua na prática da tradução.
A Linguística, cujas aulas eram ministradas no terceiro ano, foi uma disciplina que dava ao curso de Letras da FNFI especial destaque de modernidade, consoante novas abordagens dos estudos linguísticos em voga na Europa e na América do Norte, através dos estruturalismos , do semioticismo e do gerativismo. Enfatize-se que a Linguística foi de introdução obrigatória tardia nas universidades brasileiras ( década de 60).
Em 1935, foi criada a Universidade do Distrito Federal, de efêmera existência ( de 35 a 39). Nela a Linguística aparece na organização curricular.Em 1938, o linguista Mattoso Câmara torna-se professor na recém criada universidade, e apenas nesse ano, pois esta universidade seria logo extinta no ano seguinte.
A Linguística , no entanto, reaparece no currículo de Letras da FNFI da Universidade do Brasil ( 1939),mas somente a partir de 1948, e apenas para os alunos de Letras Clássicas, estendendo-se às Letras Neolatinas e Anglo-germânicas, em 1958. O Curso da FNFI foi o curso, pode-se dizer , pioneiro de Linguística no Brasil Só em dezembro de 1962, o Conselho Federal de Educação estabeleceu que toda escola superior de Letras deveria incluir obrigatoriamente o ensino de Linguística nos seus currículos.
O curso pioneiro de Linguística na FNFI seguia o pensamento de Mattoso Câmara, até o final dos anos 60 . Ele viria a falecer em janeiro de 70. O curso de Mattoso Câmara se baseava na sua obra pioneira entre nós “Princípios de Linguística Geral”(como introdução aos estudos superiores da língua portuguesa), tendo alcançado, sempre revista e aumentada, três outras edições em vida do autor. Muitas outras edições, após a sua morte , em 1970, foram publicadas, reproduzindo o texto da quarta e última edição, de 1964.
Os “Princípios” de Mattoso tinham evidentemente como objeto de estudo a teoria linguística, com a divulgação de um modelo referencial novo entre nós (o estruturalismo), representando uma mudança sensível de paradigma em relação aos estudos sobre a linguagem no Brasil, embora ainda obra de transição entre a linguística tradicional, historicista e a moderna,estrutural.
O curso que Mattoso Câmara ministrava na Faculdade Nacional de Filosofia ( de 48 a 69) se baseava fundamentalmente nos seus “Princípios”. Tivemos acesso a Saussure, ao estruturalismo da Escola de Praga (Jakobson, Trubetskoy) , às ideias de Sapir, ao descritivismo norte-americano, com Bloomfied e seus seguidores ( Gleson, Nida…).Havia um flagrante contraste entre a orientação do ensino da Cadeira de Língua Portuguesa e da de Linguística.
O curso de Filologia Românica, em um ano, na segunda série, focalizava sobretudo a formação das línguas românicas. Em 1957, houve a passagem da Cátedra do Padre Augusto Magne para o filólogo Serafim da Silva Neto. Dois insignes romanistas. Padre Magne se aposentou, pela compulsória , em 1957,e Silva Neto assumiu a disciplina, prestando concurso para a Cátedra. Duas das obras dele focalizavam o chamado latim vulgar, base justamente das línguas neolatinas “ Fontes do Latim Vulgar” e a “História do Latim Vulgar”.
No primeiro ano do curso, tínhamos a disciplina “Civilização Greco- Romana”. Ao contrário da expectativa, recebemos aulas de história romana e de história grega. A expectativa é que a disciplina focalizasse a vida quotidiana greco-romana, em seus costumes: o casamento, a relação familiar, a religiosidade, a prática esportiva, o sepultamento e tanto mais. Certa decepção foi percebida entre os alunos.
Em síntese:
O currículo da minha época de estudante de Letras da FNFI era rígido, sem acolher disciplinas optativas, como Teoria Literária, ou disciplinas monográficas, como um curso que tratasse especificamente do Romantismo ou do Modernismo na Literatura Brasileira ou Portuguesa, ou do Português Arcaico, na Cadeira de Língua Portuguesa.
A Cadeira de Língua Portuguesa se mostrou em suas aulas com uma orientação normativa. O historicismo se fazia também muito presente, embora a leitura de textos se concentrasse em autores do século XIX. Textos medievais ou modernistas não eram focalizados. Pouco se falava assim no Português do Brasil. Aulas iniciadoras do estudo de Crítica Textual, de que Sousa da Silveira e Celso Cunha se tornaram grandes mestres, não se fizeram presentes.
Na Cadeira de Latim, a prática da tradução poderia , para um melhor aproveitamento dos alunos, insistir em autores bem mais acessíveis, a começar de Eutrópio. Ficar cerca de uma hora tentando traduzir textos de um Horácio sem dicionário não era incentivador.
Na Cadeira de Grego se alcançava um bom domínio da gramática, e mesmo da leitura em voz alta da sua escrita.
O curso de Letras seguia um horário (no primeiro ano, das 8 horas ao meio dia; nos outros anos, das 13 às 19 horas), que praticamente impossibilitava sua freqüência por quem trabalhasse, a menos que o curso fosse completado em mais de quatro anos. Até o final dos anos 50, o Curso alcançava poucos alunos.
Contávamos com um corpo docente de inegável prestígio acadêmico, até mesmo internacional, como um Serafim da Silva Neto , um Padre Augusto Magne, um Celso Cunha, um Alceu Amoroso Lima, um Mattoso Câmara, entre outros. Nem todos, no entanto, se mostravam professores com pendor pedagógico. Dedicavam-se mais à pesquisa de seus campos de estudo. Careciam, talvez, do “animus docendi”. Mas a palavra deles foi sempre relevante em indicações bibliográficas de sua área de estudo e pesquisa.
No final dos anos 50, muitos formandos, alguns já como professores da FNFI, tinham conhecimento e acompanhavam as significativas e reiteradas mudanças processadas no currículo dos cursos de Letras, cursos estes que se multiplificaram por todo o país. Não podemos deixar de reconhecer, pois, que, para a época em fui aluno da FNFI ( de 56 a 59) frequentei uma graduação de bom nível, conheci mestres que até hoje são muito lembrados pelo legado das obras que deixaram para a posteridade.
A FNFI formou, sem dúvida , mormente em seus últimos anos, um grupo de jovens professores que passaram a lecionar várias disciplinas da FNFI, contribuíndo significativamente para, incorporar um mundo conceitual moderno à pesquisa e ao ensino de línguas e de literaturas. Passou-se a contar com a publicação continuada de obras que, em português ou em outras línguas, constituíam uma bibliografia atualizada, segundo os fundamentos contemporâneos da Linguística e da Teoria Literária.
Minha prática docente me permitiu ir avaliando melhor o curso de graduação frequentado, o quanto ele me valeu para minha prática docente e para meu engajamento na atividade de pesquisador da linguagem.
Só o professor para nos contemplar com um testemunho de tal importância.
Muito obrigada
Parabéns
Obrigado, Laila. Envelhecendo, a gente gosta de falar do passado. Lembro-me bem ainda do meu curso de graduação. Bem diferente do que ele se apresenta hoje. Recordar é viver. Abraço.
Morri de inveja.